Enciclopédia Berardo de Arte: novos capítulos
Entre Sintra e Belém, em Lisboa, podem ser visitadas mais de meio milhar de peças da colecção de Joe Berardo. São obras de aquisição recente, obras que os espaços disponíveis nunca tinham permitido expor ou peças já conhecidas que a qualidade histórica exige que sejam retomadas. Acrescentam-se novos capítulos à mais (única) internacional das colecções portuguesas.
Poderemos ver, entre Lisboa e Sintra, obras nunca expostas ou reenquadradas de outro modo pertencentes à colecção de Joe Berardo - a única colecção portuguesa capaz de dialogar com congéneres internacionais. Essas obras são apresentadas, a partir de ontem e a partir do próximo dia 30, respectivamente, em Lisboa, no Centro Cultural de Belém (CCB) e em Sintra, no Museu que leva o nome do coleccionador.As escolhas da colecção que alimenta estas exposições devem-se à acção de Francisco Capelo que, desde início dos anos 90 e até ao final do ano passado, foi mentor das aquisições que originaram o arranque das compras, a sua polémica apresentação e a instalação do Sintra Museu.A ambição de colocar Portugal nos circuitos do grande coleccionismo internacional está garantida desde a inauguração do Museu e esta apresentação de novas aquisições ou de obras nunca expostas justifica a distinção. Como novidade acrescenta-se agora uma orientação para aquisições de autores nacionais, restritos, porém, aos nomes revelados desde os anos 60. Esta dimensão nacional pode ser vista, em Sintra, com a integração de Joaquim Rodrigo, Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, José Barrias, Fernando Calhau, António Palolo ou José Pedro Croft e, em Lisboa, com a integração de Paula Rego e Julião Sarmento no contexto das selecções apresentadas. Mas as lógicas de ambas as exposições é diversa. Em Sintra, a novidade relativamente ao passado recente do museu é muito visível pois a directora, Maria Nobre Franco, realizou uma ruptura com a sequência histórica e introduziu uma montagem temática. No CCB, a própria dimensão diversificada das obras, sua dispersão formal, cronológica, autoral e temática obrigaram Margarida Veiga, directora do módulo de exposições, a uma apresentação didáctica, ou seja, cronologicamente orientada ou articulada por países e movimentos. Partindo dos anos 10 deste século e chegando aos anos 90 é também em Lisboa que se apresenta a maioria das peças recentemente adquiridas, enquanto em Sintra se trata de apresentar peças que a anterior montagem nunca permitira mostrar. No entanto, os critérios não são rígidos e, em ambos os lados, encontramos peças novas e peças antigas, peças inéditas ou já vistas. O objecto e a paisagem, a linguagem ou os retratos, os enigmas ou os mitos, são algumas das perspectivas da abordagem ensaiada em Sintra. Elas permitem-nos desenvolver um olhar criativo sobre obras que são datadas desde antes da II Guerra mas que se concentram na segunda metade do século. Especialmente interessante a sala onde se trata do "Objecto". Nela são confrontados diferentes modos de representação dessa entidade esquiva que o século esvaziou de sentido ou tornou omnipresente: obras de "nouveaux réalistes" como Spoerri, Arman ou a já exibida "expansão" de César e derivações pop (uma tela recente de Caulfield ou a revisitação que dela fazem autores tão recentes como Craigg Martin e Lisa Milroy) são acompanhados pela poética presença de uma natureza-morta (escultura) de José Barrias.Também interessante é o diálogo entre um magnífico Joaquim Rodrigo e Kitaj, onde a "Paisagem" se torna mapa de memória pessoal e comentário político, e a dimensão abstracta de um Gerard Richter. E o modo como se estabelece a passagem entre este espaço e o da sala onde a paisagem é tratada de modo mais intelectualizado, embora num arco que vai da Land Art ao conceptualismo da fotografia alemã: com o céu nocturno de Thomas Ruff, as fotos de Hamisch Fulton, as de Brend e Hilla Becher ou as esculturas de Alberto Carneiro e Richard Long.No átrio superior, enfrentando a grande peça (inamovível) de Gilbert and George estão agora apenas duas esculturas: o movimento espiralado e abstracto de Croft (conseguido através da sobreposição desencontrada de dois cubos sobre uma mesa oval) e o corpo humorado e sintético de uma mulher, segundo Ernesto Neto, brasileiro. Na sala dos "Retratos" a tradição pop anglo-saxónica e suas derivações francesas prolonga-se nas figuras da nova pintura britânica e dá passagem a uma breve presença do que a directora pensou como sendo "Enigmas": os irmãos Balthus e Klossovsky e um poderoso, e recentemente adquirido, Bacon provam que o corpo não deixa de ser o sentido profundo das obras. A mesma continuidade se percebe nos espaços seguintes onde os "Mitos" são encenados quer pelo lado da persistência da pop quer na sua versão neo-expresionista alemã dos anos 80 (com Immendorf) ou nas reflexões pós-colonialistas e multiculturais de Adriana Varejão ou de Manuel Ocampo. Um dos diálogos físicos mais ricos é o que Helena Almeida (peça fotográfica de 15 painéis aqui reduzida por falta de dimensão da sala) e a escultura de Gormley ensaiam: ela, pretendendo romper uma parede sem saída; ele, construindo um ser adulto que, num impossível parto, de si mesmo faz sair um outro adulto. De surpresas se faz também a viagem pelo CCB. Desde logo a dimensão das compras relativas ao construtivismo europeu dos anos 10 e 20 nas suas dimensões russa e soviética, alemã e centro-europeia, numa articulação que nos leva de El Lissitsky ou Rodchenko aos nomes da Bauhaus, e que estabelece os laços de cruzamento das linguagens até às fronteiras mais vastas do dadaísmo e do surrealismo, por um lado, e com a descendência directa do constructivismo que foi a abstracção dos anos 20 e 30 no seus exemplos mais internacionais - através, por exemplo, do De Stijl ou a Abstraction-Création. Picabia e Duchamp emergem duplamente dessas realidades interrogativas do estatuto formal do objecto nos anos 10 e do seu estatuto onírico nos surrealismos. Um espaço onde a par de uma excelente assemblage de Dali ou três boas pinturas de Max Ernst se integram o Picasso da colecção. Segue-se um extenso corredor com exemplos do movimento surrealista internacional, dissecado nos seus nomes mais significativos ou localizados e em diálogo com as sensibilidades abstractas e geométricas referidas aos mesmos anos 20, 30 e 40. A passagem para a abstracção dos anos 50 quer em França (Bissière ou Vieira da Silva), quer nos Estados Unidos, quer em Espanha (Tapiès) refere o balanço das sensibilidades no tempo. Ao mesmo tempo, a persistência da figuração política através da visão realista do italiano neo-realista Guttoso confronta-se com o sonho primitivista dos Cobra. Segue-se todo o ambiente dos anos 60, nas suas dimensões figurativas da pop saxónica ou do "nouveau réalisme" francês. E a reacção da Arte Povera italiana (dois monumentais exemplos nas obras de Kounelis e Mario Merz, nunca antes mostradas) e do minimalismo dos anos 70. Aqui, pontuam Kosuth, Dan Flavin e o grupo Art & Language mas deve realçar-se a peça de Richard Serra, montagem em tensão de dois grandes quadrados de aço que obrigaram ao reforço do chão e paredes da sala. O choque dos anos 80 é ilustrado por uma boa sala da Tranvanguardia italiana, por boas representações da realidade germânica (de Sigmar Polke a Anselm Kiefer) e por uma forte representação americana (David Salle ou Schnabel). O final do percurso pretende assinalar quer algumas das reacções ao neo-expressionismo dessa década, quer a grande visibilidade dos media não pictóricos ou escultóricos, quer a continuidade da pintura e da escultura, mas segundo novos parâmetros e temas. Thomas Ruff ou Cindy Sherman, usando a fotografia segundo critérios opostos de neutralidade e teatralidade, o esfriamento dos signos de Matt Mullican ou as figurações violentas que as exposições da colecção Saatchi têm revelado a partir de Londres nos anos 90 (por exemplo nas mostras "Sensation", I e II), os chocantes híbridos realizados pelos irmãos Chapmann, expressões do multiculturalismo como as pinturas de Gallan e Ray Smith, obras de Paula Rego ou Julião Sarmento podem ilustrar estas realidades multipolares onde o corpo continua a afirmar a sua centralidade. Tínhamos sido já recebidos à entrada da exposição por dois corpos. Duas figuras de homem, os reconhecíveis manequins do espanhol Juan Muñoz, suspensos num cenográfico jogo de volumes e sombras, tratam de nos desiludir no que respeita à felicidade que através da arte poderíamos alcançar: são corpos suspensos em esforço, tormento e angústia - imagens de um século sem utopias realizadas.