A melhor posição para morrer
A presunção de um acto violento, cometido sobre a pessoa de um amigo, no espaço íntimo que um tapete sempre sugere, é o tema encenado por Patrícia Garrido. Trata-se mais do que nunca de um jogo: um falso puzzle, uma solitária paciência onde as peças foram modelos reais.
Patrícia Garrido encena um acto violento, exercido num lugar íntimo, sobre um sujeito muito particular. Tratar-se-á da representação diferida de um assassinato a tiro, na sequência do qual o corpo de uma pessoa cai sobre um tapete. O tapete é uma coisa doméstica que assim reforça a intimidade que o título da exposição, "Levou um tiro de um amigo", já anuncia. Os temas dos trabalhos de Patrícia Garrido têm a questão da intimidade como fundo permanente e o corpo individual da artista como centro de atenção privilegiada. As dimensões subjectivas da representação do corpo e do desejo, da alimentação ou da habitação são capítulos preenchidos em sucessivas séries: "O prazer é todo meu" (esculturas de 1994), "P.G. q.b." (diaporama de 1995), as seis versões da série "T" (instalações desenvolvidas entre 1997 e 1999) ou uma outra instalação ("Período Azul", 1999) que lhe valeu o Prémio da União Latina. A representação dos espaços concretos (as casas onde viveu sucessivas etapas da sua vida ou de que se apropriou através de uma acção performativa registada em fotografia, por exemplo, a série de "Kilómetro azul, kilómetro rosa, kilómetro amarelo", 1998) é associada a uma reflexão sobre o espaço abstracto. Por exemplo, "kilómetro enrolado", 1996, cujo título esgota a descrição da obra, é uma peça que existe como citação histórica de certas investigações da tradição conceptual mas através de uma fisicidade próxima da Arte Povera italiana. É no sentido de uma certa abstracção que as obras da exposição agora apresentada também funcionam. Mas em todos os ângulos de abordagem os elementos de "Levou um tiro de um amigo" sugerem sempre uma duplicidade interpretativa. Por um lado, tratam de representar um corpo (humano); por outro, essa representação é a de uma ausência - o corpo que já lá esteve mas que também já lá esteve como cadáver. A silhueta representa um vazio formal e um vazio de vida. As formas são lidas de imediato como seguindo as convenções de representação do registo policial de um crime de morte. Mas sabemos que ele foi, afinal, encenado pela suposta criminosa com a conivência lúdica das vítimas, por vezes em sessões colectivas. E sabemos que a posição registada resulta de uma coreografia pessoal - cada um escolheu o que achava ser a melhor posição para morrer. O que poderia, portanto, ser uma encenação narrativa, regida por um guião narrativo verosímil ou mesmo historicamente verificável (na tradição de uma arte ficcional, descritiva e/ou de comentário, de Patrick Corrillon a João Penalva) é, de facto, um jogo colectivo regido pela artista em função de um objectivo visualmente útil e com a cumplicidade divertida dos actores. A citação de um cadáver ausente não assume nem dimensões narrativas nem metafísicas. Por um lado, não questiona a essência dos objectos ou da representação (como ela pode ser entendida na dimensão histórica das silhuetas sobrepostas de Picabia ou das sombras de Lourdes Castro). Por outro, o crime multiplica-se para além da capacidade eliminatória do melhor serial killer - banaliza-se de tal modo que poderia surgir como comentário à banalização mediática das imagens se não estivesse sustentado por um jogo lúdico. Ao partimos do desenho para a instalação por continuidade ou sobreposição de cada tapete no espaço imenso da galeria, o mapa de cada corpo torna-se num labirinto colectivo que funciona mais como um discurso ou exercício de humor. A provocação possível destes jogos de pose é de dois tipos. Por um lado, o humor de que falámos tem um fundo negro: "Como gostarias de morrer se eu te desse um tiro?", podia ser uma pergunta possível da artista ao seu modelo; "Sobre qual destes tapetes (todos de má qualidade e duvidoso gosto) gostarias de cair ?", podia ser outra pergunta evidente. Por outro lado, as respostas às questões poderiam fornecer-nos respostas sobre a personalidade dos modelos - neste sentido, a artista estaria a fornecer-nos os resultados de um verdadeiro inquérito: como lida cada inquirido com a ideia de morte violenta? Que à vontade tem com o seu próprio corpo, quando se vê obrigado a conduizi-lo numa performance, indefeso no espaço estranho de um chão? Que gosto (mesmo que por ironia de escolha) revela a selecção do fundo (tapete) escolhido para cenário da exposição do seu corpo? Finalmente, a artista revela-se/expõe-se na mesma forma: porque escolhe estes (amigos do meio artístico, excluindo família e uma subsérie de 15 "auto-retratos" que dilui na montagem) e não outros modelos? Porque escolhe o tapete como elemento do cenário (que tanto nos remete para a referida dimensão da intimidade doméstica como para a bidimensionalidade da pintura)? Porque opta, de todas as relações humanas possíveis, pelo assassinato?