Ouvir ou não ouvir "as duas partes"
Se há "regra de ouro" consensualmente assumida e sistematicamente invocada, a propósito do trabalho jornalístico, é a regra de "ouvir as duas partes". Trocado por miúdos, significa isto que, na abordagem de qualquer matéria em que se conheça (ou presuma...) a existência de diferentes interesses ou pontos de vista, o jornalista deve ouvi-los todos, dando a cada um idênticas possibilidades de expressão. O texto publicado será, assim, um mosaico de opiniões mais ou menos contrastantes, apresentado de forma distanciada das partes em confronto - e que, por isso mesmo, não comporta em si qualquer juízo de valor, mas fornece aos leitores elementos bastantes para eles próprios, querendo, ajuizarem.O cumprimento escrupuloso deste "princípio do contraditório" - que é também, como se sabe, alicerce basilar de qualquer processo judicial - torna-se especialmente relevante quando alguém é acusado por outrém. Aí, a concessão do elementar direito de defesa a quem se sente ofendido pode mesmo levar (como tantas vezes sucede) ao adiamento de publicação de interessantes matérias jornalísticas, precisamente por se entender que, sem a versão da "outra parte", essas matérias ficam inapelavelmente "coxas". Ao profissional da informação cabe o dever incontornável de, por todos os meios ao seu alcance, conseguir a versão da parte ofendida, com a única ressalva de que não pode prolongar o processo indefinidamente quando estão em causa assuntos de óbvio interesse público. De facto, a parte ofendida por vezes não quer falar - e está no seu direito - mas, outras vezes, multiplica-se em escapadelas e manobras dilatórias cujo único fito é tentar impedir o jornalista de publicar a sua história. Ora aí, esgotados zelosamente todos os esforços para recolher as diferentes versões, e disso informado o público leitor, parece legítimo avançar com o tema. Mesmo sabendo-se, como é tão usual, que quem se furtou ardilosamente a falar ao jornalista virá depois, revoltado, exigir um "direito de resposta" que não quis utilizar antes...A questão que agora nos importa colocar é se a tal "regra de ouro" tem mesmo de ser cumprida em todas as ocasiões ou se há certas abordagens noticiosas que consentem excepções. É uma questão subjacente à reclamação dirigida ao provedor pela arqueóloga Mila Simões de Abreu que, "enquanto leitora", se sentiu defraudada por uma notícia (publicada em 18/1/00) sob o título "Arqueólogo Nélson Rebanda vence processo a propósito das gravuras do Côa - Mila Simões de Abreu condenada a pagar dois mil contos".No texto, assinado pelo jornalista Pedro Garcias, dava-se basicamente conta do desfecho de um processo judicial envolvendo os dois arqueólogos referidos, com o primeiro a queixar-se de uma série de ofensas verbais alegadamente proferidas pela segunda e dadas à estampa, sob a forma de entrevista, no jornal regional "Terra Quente". O tribunal de Moncorvo acabou por dar razão a Rebanda e produziu uma sentença condenando Mila Simões de Abreu."Quero (...) expressar a minha desilusão por ter visto que a notícia não é de forma alguma um relato do que se passou durante o julgamento. Acho que para o leitor do PÚBLICO seria interessante saber que em tribunal (...) me considerei inocente, que a alegada entrevista não é por mim assinada, que não tem autor e que o director do jornal 'Terra Quente' morreu", diz a arqueóloga, criticando o jornalista por ter reproduzido, entre aspas, citações da tal entrevista que ela nega ter dado. Lamenta ainda que o PÚBLICO não a tenha contactado para ouvir os seus comentários, ou sequer para recolher a informação de que tenciona recorrer da sentença.Solicitado a explicar-se, o jornalista Pedro Garcias diz: "Não penso ser obrigatório ouvir as partes envolvidas num processo após a leitura de uma sentença. Em todo o caso, mal a juíza acabou de ler o seu veredicto, tentei ouvir uma reacção da defensora oficiosa de Mila Simões de Abreu (que não esteve presente), mas a senhora advogada limitou-se a dizer aquilo que eu escrevi: 'Hoje, 17 de Janeiro, fez-se justiça'". Sobre a citação de partes da polémica entrevista, esclarece: "A juíza deu como provada a existência dessa entrevista, e por isso condenou Mila Simões de Abreu. Por essa razão é que eu, simplificando processos, reproduzi as acusações que a arguida faz ao queixoso nessa mesma entrevista". Admite, contudo, que, ao citar as frases em discurso directo, teria sido mais rigoroso se as antecedesse de uma referência que as situasse claramente: "Nos termos da acusação...", etc., etc..A simples notícia do desfecho de um processo judicial parece, efectivamente, ser uma das situações em que não é imperioso ouvir as duas partes. Nessa situação, o objecto da notícia já não é o caso que colocou duas partes em confronto (e muito menos a reprodução dos argumentos trocados ao longo do julgamento), mas o desfecho desse mesmo caso - ou seja, o juízo que sobre ele foi feito. E que, dando razão a um dos contendores, deixa sempre insatisfeito o outro. Há uma matéria de facto a divulgar junto da opinião pública - a sentença - que, só por si, parece ter justificação noticiosa. Acontece, entretanto, que o texto do PÚBLICO entendeu (e bem) não se ficar pela mera informação sobre o veredicto judicial. Dado tratar-se de uma questão sensível e muito polémica, como foi a das gravuras rupestres do Côa, o jornalista decidiu contextar o caso, explicando como ele surgira e em que se fundamentava. Compreende-se que tenha dado especial ênfase à acusação (reproduzindo até alguns excertos - os tais que devia ter situado de modo mais claro), pois foi essa a tese acolhida pelo tribunal para justificar a sentença. Mas, neste esforço de contextar a notícia para além do mero desfecho do processo, era razoável que tivesse recordado também a tese essencial da defesa. Girando tudo à volta de uma longa entrevista publicada num jornal, seria útil aos leitores não familiarizados com o caso saber que Mila Simões de Abreu negava, pura e simplesmente, ter dado qualquer entrevista. Mesmo que o tribunal, no fim de contas, tenha recusado essa sua versão.Importa relevar que, apesar de tudo, o jornalista até se interessou por ouvir "as duas partes": fê-lo no final da audiência, recolhendo os comentários tanto da acusação como da defesa, com o propósito de acrescentar algumas opiniões aos factos noticiados. Ouviu Nélson Rebanda, que disse de sua justiça, e só não ouviu Mila Simões de Abreu porque ela não estava presente; mas ouviu a sua representante no local, a defensora oficiosa, que para todos os efeitos era ali "a outra parte". Se esta entendeu não recordar as posições da sua constituinte, nem sequer dar informação sobre um eventual recurso, é questão que já escapa à responsabilidade do jornalista.