Craxi morreu no exílio
Em tempos um dos políticos mais poderosos de Itália, o ex-dirigente socialista Bettino Craxi morreu ontem no exílio, na cidade tunisina de Hammamet, onde vivia desde 1994 para não cumprir as penas de prisão a que foi condenado no seu país. "Ele não morreu, mataram-no", disse a filha. O antigo primeiro-ministro será enterrado na Tunísia.
Bettino Craxi morreu ontem, aos 65 anos, de ataque cardíaco, no seu auto-imposto exílio na Tunísia. Condenado à revelia em Itália em vários processos por corrupção a um total de 27 anos de prisão, o ex-líder do Partido Socialista Italiano (PSI), corria o risco de ser preso se regressasse. Exilado em Hammamet desde 1994, acabou por morrer no país onde se refugiou para escapar à justiça. Em Novembro do ano passado, Craxi tinha sido operado a um tumor maligno e os médicos tinham-lhe retirado um rim. Abriu-se em Itália um debate sobre a possibilidade de lhe ser dada imunidade para que pudesse receber tratamento médico no seu país. Acabou por não ir. A sua filha Stefania, que se encontrava ao lado do pai no momento em que ele morreu, disse que o corpo não irá para Itália. "O meu pai ficará na Tunísia. Esta é a sua pátria agora." Em declarações à agência Ansa, Stefania lançou duras acusações às autoridades italianas: "O meu pai não morreu, mataram-no". Apesar disso, o Parlamento italiano suspendeu os trabalhos durante dez minutos em memória de Craxi e uma fonte do gabinete do primeiro-ministro Massimo d'Alema, citada pela agência Agi, admitiu que, se a família desejasse, Craxi poderia ter um funeral de Estado."Tudo o que ele conseguirá dos outros será 50 por cento de pena e 50 por cento de hipocrisia", disse um dia um antigo ministro italiano, referindo-se a Craxi. A Itália estava a assistir ao princípio da queda de um dos seus políticos mais poderosos - um processo que iria transformá-lo numa sombra de si mesmo, exilado, doente e, por vezes, quase esquecido.O todo-poderoso Craxi tinha uma figura que impressionava: alto, confiante, algo arrogante, sabia que tinha o poder de fazer e desfazer governos, de decidir quem seria promovido e quem seria afastado, de determinar a vida das pessoas e o destino do país. O PSI era um partido bastante mais pequeno do que a Democracia Cristã (DC) ou o Partido Comunista Italiano (PCI), mas era o fiel da balança e a DC precisava dele para as maiorias governamentais. O dirigente socialista seguiu sempre a estratégia de marginalizar os comunistas e privilegiar as alianças com a DC.Craxi foi uma das figuras mais emblemáticas do final da chamada I República Italiana, o período que se seguiu ao fim da II Guerra Mundial e que terminou, no início da década de 90, por entre escândalos de corrupção e revelações chocantes sobre a forma como o país tinha sido governado. Mas poucos terão caído com tanto estrondo como Bettino Craxi. Os anos 80 foram a sua década dourada. Autoritário, liderou o PSI, com pulso de ferro e durante 16 anos, e foi primeiro-ministro entre Agosto de 1983 e Março de 1987 (o mais longo governo italiano do pós-Guerra). Na campanha para as eleições de Abril de 1992, Craxi aparecia igual a si próprio: "Há apenas um candidato ao posto de primeiro-ministro e esse candidato sou eu". Esperava-se, de facto, que assim fosse. Mas nem a imprensa nem o próprio líder socialista se aperceberam que a queda estava prestes a começar. Poucos meses depois surgiram as primeiras acusações de corrupção dirigidas ao seu filho Bobo, responsável pelo PSI de Milão. A 15 de Dezembro de 1992, Bettino recebeu o primeiro aviso judicial de que estava a ser investigado por corrupção e violação da lei sobre o financiamento dos partidos.A reacção de Craxi foi à medida da sua soberba, em forma de ameaça: "Se me atacarem pessoalmente, se tentarem atingir-me a mim e à minha família, relatarei com pormenores a verdadeira história por detrás do financiamento dos partidos."Governado por Craxi durante 16 anos, o PSI era um dos partidos mais profundamente mergulhado em esquemas de corrupção e financiamento ilegal. Mas o dirigente socialista sabia que não cairia sozinho e que era apenas uma peça de uma complexa engrenagem de que faziam parte todos os partidos italianos, grande parte dos políticos, em última análise, todo o país. Só que - e isso ele não conseguiu prever - as suas denúncias transformaram-se em patéticas gesticulações de um homem a afogar-se. Alguns dos que o rodeavam caíram com ele, é certo, mas outros não. Alguns sujeitaram-se com a dignidade que conseguiram salvar aos julgamentos, outros não conseguiram suportar a humilhação e suicidaram-se. Os juízes da Operação Mãos Limpas mostraram-se implacáveis e não pararam perante nada. Bettino Craxi decidiu fugir. Em 1993, o último ano que passou em Itália, o jornalista Matt Frei foi encontrá-lo num sofá do "lobby" do Hotel Raphael, junto da Piazza Navona, no centro de Roma. Este era o local onde habitualmente trabalhava quando estava na capital. Mas, desta vez, era uma imagem desoladora, em mangas de camisa, com a gravata alargada, rodeado de copos vazios, chávenas de café e cinzeiros a transbordar. Fumava constantemente e a cinza caía-lhe na camisa. Nessa altura, havia já dezenas de processos contra ele, por corrupção. As saídas estavam a fechar-se, os amigos começavam a rarear.A 29 de Abril de 1993, a Câmara dos Deputados impediu a abertura de um processo contra Craxi, protegido pela imunidade parlamentar. Em frente do Hotel Raphael, uma multidão indignada lançava uma chuva de moedas e pedaços de pão contra o líder socialista, naquela que ficou para a História como a cena mais humilhante de todo o desenrolar da sua queda.No ano seguinte, Craxi refugiava-se na sua casa de férias em Hammamet, na Tunísia. Durante uma semana ninguém sabia dele, as autoridades tinham tentado confiscar-lhe o passaporte e o antigo líder italiano pura e simplesmente desaparecera. Foi a sua mulher, Anna, quem revelou que ele estava na Tunísia, internado numa clínica devido a complicações de saúde provocadas pela diabetes. Tinham começado também os problemas de saúde, que ao longo dos últimos anos se foram agravando. Craxi sempre dissera que considerava a Tunísia como a sua segunda casa. A partir de 1994, o país transformou-se no seu primeiro, e único, refúgio (a partir de Julho de 1995, a Itália declarou-o oficialmente em fuga). Mas Craxi não desistiu. Do exílio bombardeava os gabinetes de políticos e juízes em Roma com centenas de faxes, com denúncias e revelações.Disparou para todos os lados, gravou conversas secretas, explicou que os socialistas precisavam de recorrer a financiamentos ilegais para combater os comunistas, garantiu que "a participação dos grupos industriais no financiamento dos partidos era perfeitamente consciente, voluntária, interessada e muitas vezes planeada". Apesar de fisicamente longe, Craxi continuava a manter uma influência considerável sobre a vida política italiana, em grande parte através do seu amigo - então em fase de ascensão - Silvio Berlusconi. No final do ano passado, o seu nome voltou a ocupar as primeiras páginas dos jornais italianos. O país discutia se ele deveria ou não ser autorizado a regressar, com a garantia de não ser preso e ter que cumprir as penas a que já fora condenado, para ser assistido num hospital de Milão. Craxi acabou por recusar uma proposta de tratamento sob vigilância judicial no Hospital San Rafaele."Durante toda a minha vida prestei inúmeros serviços ao meu país", dizia, "e sou tratado como um dos maiores criminosos do mundo."