Mas porque é que não o lêem?
Alessandro Baricco acumula prémios e "best-sellers" um pouco por toda a parte. Acaba de ser traduzido o seu quarto livro publicado em Portugal, "Novecentos". Saímos da sua leitura renovados. Mas alguém chegou a ler os outros?
Os romances do italiano Alessandro Baricco "Castelos de Raiva", "Oceano Mar" e "Seda" - "best- seller em todos os países onde se editou" - foram amplamente premiados (Médicis Estrangeiro em 1995, entre outros). Podem encontrar-se, em português, os três, na Difel. Nascido em Turim em 1958, além de romancista, Baricco é também ensaísta ("Il Génio In Fuga, Sul Teatro Musicale Di Rossini", 1988, e "L'anima di Hegel e le muche del Wiscosin", 1992, ainda não traduzidos) e crítico musical. Fez, na RAI 3, dois programas de sucesso "L'amore é un dardo", sobre ópera, e "Pickwick, do ler e do escrever", sobre literatura. Fundou em Turim a escola Holden, que se dedica a técnicas narrativas.O pretexto que nos traz a este autor é a publicação recente de "Novecentos", excelentemente traduzido por José Colaço Barreiros. A questão é: porque é que quase ninguém em Portugal lê Baricco?Da leitura de "Novecentos", um monólogo teatral (embora Baricco diga no prefácio que não sabe bem como classificar um texto neste género) saímos renovados, já que é um livro novo, em todos os sentidos.A história de Novecentos - nome posto a uma criança encontrada em 1900 no salão de baile de um transatlântico ( o "Virginian"), cujo nome completo acabou por ser Danny Boodmann T. D. Lemon Novecentos - não leva mais de 60 páginas a contar.Nasceu no barco, onde foi abandonado (recém nascido) em cima do piano do tal salão de baile por uma família de emigrantes que viajava para a América e que só deixou como rasto duas letras e uma palavra, escritas na caixa de papelão em que o bebé foi encontrado: "T. D. Lemon" Também havia "uma espécie de desenho de um limão". Quem o encontrou logo de manhã foi o marinheiro negro de Filadélfia, Danny Boodmann "um gigante", que se aproximou, esteve a ver, depois "pegou no bebé ao colo e disse-lhe: "Hello lemon!". E sentiu "um baque" no coração. Sentiu que se tinha tornado pai.Mais tarde deu com um jornal "em que vinha o reclame de um homem com cara de idiota, (...) em que trazia desenhado um limão (..) e ao lado o letreiro dizia: Tano Damato, limões de reis." "Tano Damato... O velho Boodman não se demoveu nem um milímetro. - Quem é este maricas? - perguntou. E pediu o jornal porque ao lado do anúncio vinham os resultados das corridas."Oito anos, dois meses e onze dias depois (quase aos nove anos), Novecentos voltou a ficar órfão, pois Boodmann morreu. Nessa altura, a tripulação do barco deu-se conta de que Novecentos, que nunca tinha posto os pés em terra, não tinha existência legal. Foi quando o comandante do navio decidiu chamar as autoridades e entregá-lo. Mas Novecentos desaparece.Então dá-se a segunda epifania de Novecentos: no mar, no navio, desta vez no meio da noite. Não em cima do piano, mas a tocar piano: toca JazzAs travessias sucedem-se, e Novecentos, que entretanto se tornou um pianista genial, continua sem sair do barco embora conheça o mundo através das pessoas que encontra, como nos diz o narrador, que é amigo de Novecentos e trompetista. Só uma vez... é que teve uma séria tentação. Foi em Nova Iorque. Esta tormentosa decisão é-nos dada sob a forma de um tango nas páginas 49 e 50. Pôs um chapéu azul escuro, chegou ao alto das escadas, e subitamente parou: "Tirou o chapéu (...) e deixou-o cair lá para baixo. Parecia um pássaro cansado ou uma omelete azul escura com asas. Deu um par de curvas e caiu no mar."Dentro do contexto, da forma minimalista e abstracta (linhas escuras de contorno, como numa banda desenhada a preto e branco), esta imagem é misteriosamente expressiva. Talvez por causa da cor: amarelo que se transforma lentamente em azul cobalto. Um silêncio, no meio de um texto mais ou menos frenético.Neste livro, a força explosiva vem não só da justeza, da inteligência daquilo que é dito, mas também da velocidade louca com que é dito. E, para isso, só encontramos paralelo nos filmes de Almodóvar: paixão pelo insólito da vida. Paixão de viver."Bando de cornudos, a vida é uma coisa imensa, querem percebê-lo ou não? - Imensa!", grita alguém na página 52.Segue-se o duelo com Jelly Roll Morton, que se dizia, ele próprio, o inventor do Jazz. "Coisas de músicos. Nada de sangue, mas muito ódio (...)".Da música de Morton dizem que "é magia, e da boa". Apesar de, na opinião de Novecentos, Morton ser "completamente parvo".Parece não ter havido mais nenhum acontecimento notável na vida de Novecentos.Os músicos não chegam a ter tempo de sair do barco, embora tenham a vida mais agitada do mundo. No final, Novecentos dá a sua versão, as suas razões. Mas na realidade é como se dissesse: é que andei sempre em tournée, sabe?Como todos os músicos (ou bailarinos, ou actores) a regra de vida de Novecentos tem pouco a ver com a dos outros. A sua forma de pensar é exasperada, muscular, totalitária e insuportável. De certa maneira, Novecentos é... um santo. As suas subidas de adrenalina só podem ser comparadas às dos paraquedistas quando saltam, ou às dos presidentes da República em noites de eleições, ou à excitação dos assaltantes de bancos. Tudo se passa muito depressa e tudo pode acabar mal. É a glória da vida. Este livro é feito para cantar a santidade de Novecentos.E é a glória do Jazz.Quem der atenção a todos os avatares de "Novecentos" encontrará neles uma história do Jazz concentrada. Desde Armstrong, que nasceu no ano de 1900 e aprendeu a tocar nos barcos que percorriam o Mississipi, a Ellington, que em 1927, precisamente a data em que o narrador conhece Novecentos, criou o Cotton Club em Harlem, a Goodman que avançou do Jazz clássico para o "Swing" (Boodmann), até Charlie Parker, que era mesmo pianista e cujo perfeccionismo maníaco aterrorizou todos os que o conheceram e que impôs um novo estilo... (inaugurou o "Be Bop" com Gillespie) e introduziu cromatismos e contra ritmos (as tais notas "não normais" que Novecentos tocava), até Jelly Roll Morton, nos alvores do Jazz, nos bordeis de Nova Orleães, o primeiro refúgio de uma música de negros - pensava que era, sim senhor, ele sozinho o inventor do Jazz, e houve mesmo uma querela e uma ofensiva dos "tradicionais", chamados os "Trad", que não deu em nada.O jazz é o estilo. A unidade conceptual do livro. A improvisação. Todas as cenas potencialmente dramáticas terminam de maneira idiota, ou nem sequer terminam, apenas se transfiguram porque a improvisação segue. Enquanto que os passos insignificantes podem subitamente desembocar na tragédia íntima.Na raiz está a tragédia social. É o Jazz, a música nascida do protesto dos escravos negros, que se tornou depois na música deste século, do asfalto, da pobreza, da energia louca, do riso, e de um quotidiano profusamente absurdo.Baricco cita Nietzsche: "Erguei os vossos corações, irmãos, bem alto! Erguei também as vossas pernas, bons dançarinos! e fazei ainda melhor: mantende-vos firmes, de cabeça erguida!" ("Origem da Tragédia"). "Porque se danças não podes morrer e até te sentes Deus." ("Novecentos", p. 14).Em relação a "Novecentos" (como em relação a "Oceano Mar", que é anterior, mas cuja temática - uma reflexão sobre os modos de criação artística - é a mesma): "O nosso conhecimento exterior da arte é absolutamente ilusório. (...) Só no acto de produção artística, e na medida em que se identifica com o artista primordial do mundo, é que o génio poderá saber algo da essência eterna da arte. (...) Porque só então se tornará semelhante à perturbadora figura lendária que tinha a faculdade de voltar os olhos para dentro para se contemplar a si própria; (Nietzsche, "A Origem Da Tragédia").