A criança da discórdia
Os homens de Neandertal continuam a ser um mistério envolto em polémica: eram quase como nós, apenas com uma aparência diferente, ou outra espécie? A criança do Lapedo, que é apresentada como sendo um provável híbrido entre as duas espécies humanas, está a ser alvo de acesa polémica entre investigadores portugueses na Internet.
A teoria de que o esqueleto de uma criança do Paleolítico Superior, com cerca de 24 mil anos, descoberto no final de 1998 no Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo, distrito de Leiria, é uma prova da miscigenação entre o homem de Neandertal e o homem moderno está a ser objecto de uma intensa polémica na Internet, entre arqueólogos e especialistas sobre evolução humana portugueses na revista electrónica "Mediterranean Prehistory Online". Nalguns casos, o tom é até bastante violento.A porta de entrada na polémica é o endereço http://www.med.abaco-mac.it/articles/doc/013ed.htm . Lá está um artigo escrito para a revista pela equipa que está a trabalhar no esqueleto do Lapedo, composta pelo antropólogo norte-americano Erik Trinkaus, da Universidade Washington em Saint Louis, João Zilhão, presidente do Instituto Português de Arqueologia (IPA), e pela antropóloga Cidália Duarte, também do IPA.Neste artigo a equipa dá mais uma vez conta da descoberta (publicada a 22 de Junho, na revista "The Proceedings of the National Academy of Sciences") e da interpretação que fazem dos achados. Durante a escavação , a equipa pensou tratar-se do esqueleto de uma criança moderna. Só mais tarde percebeu que tinha um mosaico de características que faziam suspeitar estar-se em presença de um cruzamento entre os homens modernos e o homem de Neandertal, que se teria processado em Portugal durante alguns milénios. A importância desta afirmação reside no facto de poder responder a uma pergunta ainda sem resposta: se os Neandertal eram ou não uma espécie muito diferente da nossa. A teoria dominante diz que sim, que são um ramo morto da evolução humana, que na Europa Central terá desaparecido há 37 mil ou 35 mil anos e na Pensínsula Ibérica há cerca de 30 mil/28 mil anos. Foram substituídos por uma vaga de emigração de homens modernos ("Homo sapiens sapiens"), vinda de África uns bons milénios antes - entre há 200 mil e há 130 mil anos. Assim, tal como estipula a teoria "Out of Africa", todos nós somos descendentes deste grupo africano.O desenvolvimento proeminente da mandíbula, "que configura claramente um queixo", é uma das principais características que associam a criança - que teria entre 3,5 e 5 anos quando morreu - ao homem moderno. A proporção entre o comprimento da tíbia e do fémur é a principal característica apontada para relacionar a criança com os Neandertal, pois estes, que estavam mais adaptados ao frio da Era Glaciar, eram mais baixos e entroncados que o homem moderno."Como bióloga e antropóloga física, considero impossível provar a hibridação, tendo por base um único esqueleto, e ainda por cima sendo de uma criança", afirma Eugénia Cunha, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Eugénia Cunha faz uma série de comparações com os valores da proporção entre a tíbia e o fémur de crianças modernas, através de colecções de ossos das universidades de Coimbra e Lisboa, bem como de outros restos fósseis, e chega a valores que não tornam estranhos os da criança do Lapedo. Mas a equipa de Trinkaus e Zilhão é frontal: "É estranho que Cunha use dados modernos e do Mesolítico para mostrar que as proporções da criança do Lapedo se encontram entre os humanos modernos", respondem, considerando que "as observações e os dados de Cunha são desnecessários e irrelevantes."Quanto ao comentário de Luís Raposo, director do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, a agressividade é de parte a parte. Raposo acusa Trinkaus e Zilhão de procurarem a "validação para as teorias culturais (e não físicas)" previamente abraçadas por ambos. É sobretudo a afirmação de que os Neandertal e os homens modernos tinham culturas equivalentes que é o alvo de Raposo. Ao aceitarem a hipótese de miscigenação, Trinkaus e Zilhão defendem que, "na perspectiva dos humanos que habitavam a Península Ibérica nessa altura, todos eram pessoas".Raposo põe em causa as datações obtidas por Trinkaus e Zilhão e afirma que não se encontram sinais de uma cultura de transição (através de vestígios da indústria lítica) na Península que dêem substância à teoria do cruzamento genético. "Estamos no limite extremo da desadequação dos dados: não há dados genéticos e apenas é conhecido um único indivíduo, uma criança pequena."Uma abordagem genética é a proposta de António Amorim, do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), que usa na sua argumentação publicações recentes que colocam o último antepassado comum do homem de Neandertal e do homem moderno há 465 mil anos - o que os torna demasiado longínquos na linha evolutiva para se considerar que, caso se cruzassem, pudessem produzir descendência fértil. Além disso, a população portuguesa, que é muito homogénea geneticamente, não contém vestígios genéticos desse hipotético cruzamento. O facto de Trinkaus e Zilhão proporem trocas genéticas sem que estejam provados fenómenos de aculturação também lhe faz confusão. "Não é possível que as trocas tenham sido exclusivamente genéticas", disse ao PÚBLICO António Amorim. A relutância da equipa em fazer testes ao ADN do esqueleto também o incomoda. "É muito desagradável. Dizem que o ADN não mostrará nada do que a morfologia não tenha já demonstrado."Zilhão justifica-se, dizendo que, além deste tipo de análise ser destrutivo, há provas de que os ossos foram contaminados quimicamente, o que tornaria os resultados pouco fiáveis: "Para quê? Para chegar à conclusão que os resultados são inconclusivos?", disse ao PÚBLICO. Levando tudo isto em conta, Raposo acusa Trinkaus e Zilhão de se deixarem contaminar pelos seus preconceitos: "Claro que estamos abertos a considerar os Neandertal 'pessoas'. O simples facto de terem resistido à expansão do 'sapiens' moderno revela as suas capacidades. Mas, para explicar a sua extinção, não são necessárias teorias dependentes de ideologias, sejam elas os velhos preconceitos 'contra-Neandertal' ou os recentes 'pro-Neandertal'".Trinkaus e Zilhão arrasam na resposta. Raposo começa por reconhecer a sua incompetência para uma análise genética ou antropológica, o que é usado contra ele: "A afirmação inicial de incompetência devia ter sido muito mais abrangente. A sua contribuição não devia ter sido aceite". João Zilhão considera, aliás, que a qualidade da discussão deixa muito a desejar: "Lamento que dois dos intervenientes [Raposo e Nuno Bicho, da Universidade do Algarve] tenham enveredado pelo ataque pessoal e pelo questionamento da nossa ética profissional. Lamento também que não tenham procurado informar-se junto de nós acerca das suas dúvidas (completamente infundadas) relativas a matéria de facto."De qualquer forma, Luís Raposo não se deixa impressionar pelo tom do debate. "Não acho que seja assim tão violento. A polémica e divergência de opiniões não me incomoda", disse ao PÚBLICO. Mas, apesar de dizer ter uma relação de amizade com Trinkaus, reconhece que "há uma dimensão de argumentação pessoal quanto à competência ou incompetência dos outros".Apenas o comentário de António Amorim é considerado válido por Zilhão, "com quem a divergência é ao nível dos paradigmas em que se baseiam as diferentes disciplinas que estudam a evolução humana". De resto, afirma, "os comentários não trazem nada de novo."Durante este mês, a revista electrónica deverá publicar um comentário do paleontólogo Chris Stinger, especialista em paleontologia humana do Museu de História Natural de Londres, que é um dos pais da teoria "Out of Africa". "Sabemos que ele tem algumas reservas à teoria da hibridação, mas é uma pessoa equilibrada", diz Zilhão. *com Raquel Palermo de Sá