Ao encontro da alma russa
Os sonhos não foram cumpridos. Nem os de Ieltsin nem os dos russos, e por isso o Presidente pediu perdão. Fê-lo na mesma manhã gelada, de véspera de Ano Novo, em que anunciou que abandonava o poder e o entregava a Vladimir Putin. Em troca recebeu imunidade vitalícia.
Ao renunciar ao seu cargo de Presidente da Federação Russa, Boris Ieltsin tornou-se no primeiro dirigente supremo do seu país a abandonar, pelo seu pé e de livre vontade, o poder. Um gesto bonito, dir-se-ia. Um sinal de que a Rússia amadurece para a democracia, acrescentar-se-ia. Que engano! A demissão do "czar" Ieltsin não foi o gesto humilde de um homem doente: foi o derradeiro acto de prepotência de um autocrata. Ieltsin sai para ficar, através de Vladimir Putin. Abandona o Kremlin no "timing" exacto para potenciar as possibilidades eleitorais do seu sucessor designado. Reduz-se à condição de homem comum para obter a a garantia incomum de que nunca - nem ele, nem a sua família, nem o seu clã - serão judicialmente perseguidos pelo que fizeram, e pelos fundos que são acusados de ter desviado. Na cadeira do "czar" volta a sentar-se um homem vindo do KGB. O que não sucede por acaso: na nova Rússia, como na velha União Soviética, é aí, não na Duma, não na sociedade civil, que reside o poder e se acumula experiência. E na cadeira do "czar" está de novo alguém que não olha a maios para atingir os seus fins - mesmo quando esses meios passam por intensificar a guerra no Cáucaso. Que estranha figura foi Boris Ieltsin. Herói da resistência ao golpe contra Gorbatchov, em Agosto de 1991, tornou-se no vilão da bancarrota russa. Velho quadro do extinto PCUS, foi dos primeiros a romper com a matriz comunista e, cavalgando o cavalo da História, conseguiu chegar ao Kremlin com a imagem de um reformador corajoso e a pose de um alcoólico mulherengo. O Ocidente começou por olhá-lo desconfiado e por preferir o comportamento civilizado, quase aristocrático, de Gorbatchov. Quando este caiu, apoiou este imprevisível urso de cabelos brancos sem convicção e sem suficiente empenhamento. Deixou a Rússia evoluir da mais fechada economia estatizada para o mais mafioso dos capitalismos oligárquicos, sempre sem ser capaz de encontrar o "reformador" em que valia a pena apostar. Sempre com medo do desconhecido - e desconhecidos eram todos que não Ieltsin. Chegámos assim à absoluta impotência e incapacidade de influenciar o destino do mais extenso dos impérios e do mais orgulhoso dos povos. Na viragem para o ano 2000, olhamos para a Rússia com a noção de que não a entendemos e que devemos temê-la.Não nos enganemos: o que Vladimir Putin foi fazer ao Cáucaso não foi apenas reconfortar uns soldados enregelados e fazer um "show" para obter uns minutos de telejornal. Foi lá para se encontrar com a alma russa. Uma alma russa que está ferida e que espera reencontrar-se com a História precisamente entre as ruínas de Grozni, no momento em que a vitória sobre os tchetchenos lhe permitir lavar as humilhações dos últimos anos. No Ocidente horrorizamo-nos quando nos chegam imagens do civis de Grozni ou quando nos informam do último ultimato das tropas russas. Em Moscovo os russos exultam. Habituado a conviver com a violência extrema, acostumado a sofrer e a fazer sofrer, a morrer e a matar, o homem da rua anseia por uma vitória que permita inverter o ciclo infernal das humilhações. Como se escrevia recentemente no "Le Monde", "a Rússia está doente de nostalgia: não compreendeu, ao contrário da Turquia, que a perda do império poderia ser a ocasião de entrar na modernidade". Uma ocasião de novo falhada. E uma nostalgia que se alimenta de um patriotismo tão profundamente entranhado no sentir popular que hoje, como no tempo do czar e como no tempo de Estaline, se continua a sobrepor a todos os outros sentimentos. Na Rússia é-se patriota antes de se ser democrata, ou comunista, ou liberal. Na Rússia está-se disposto a lutar por cada pedaço de solo mais depressa do que se está disposto a reivindicar o direito de voto ou o dever de respeito pelos direitos humanos. Na Rússia, a guerra da Tchetchénia não de discute: apoia-se. E quando Vladimir Putin voa para o Cáucaso no seu segundo dia como Presidente ele sabe que é aí que se vai jogar o seu futuro. Que ninguém se incomodará com a brutalidade dos seus homens e que até compreenderão o sacrifício de alguns. Desde que Grozni volte a obedecer a Moscovo.