Ena Pá, estamos quase em 2000

Eles garantem: esta é a mais séria entrevista que já deram! Estarão a falar a sério? O certo é que a mais histriónica, fantasiosa e eventualmente obscena (eles não concordam!) banda musical portuguesa decidiu partir tijolo com os seus esquizofrénicos alter-egos e explicar tudo. Bem, quase tudo. Ok, na realidade muito pouco. Mas vindo de quem vem, já é um favor. Senhoras e senhores, os Ena Pá estão quase em 2000 e querem ser cisnes. Pelo caminho, terão ainda de passar por sapos.

A entrevista já no fim e o vocalista dos Ena Pá 2000 não estava satisfeito com a história do entrevistador a tratá-lo por Manuel João. O artista anteriormente conhecido por Lelo Minsk, e antes disso por Lelo Marmelo, pretende agora ser reconhecido como Lelo Universal, embora no último álbum do grupo, "2001 Odisseia no Chaço", tenha assinado Lello Nimoi (na realidade Lelo Nimoid, só que uma gralha fez desaparecer o "d"). A grandiloquente decadência da sua casa de Campo de Ourique é um retiro de fantasia, cuja iluminação faz lembrar novelas russas novecentistas, com dezenas de telas a repartirem o espaço, velhas aparelhagens de som, um piano, um relógio de cuco, muitos chapéus, alguns deles rotos, uma cadeira de baloiço entre sofás usados, uma caixa de música com uma bailarina a dançar ao som de "Rain keeps falling on my head", próteses genitais, discos de capas saudosas, CDs de ópera, música clássica e um fantasminha de plástico que vibra com um som de theremin.Como distinguir, neste cenário de efabulação, a realidade do delírio, os nomes de baptismo dos seus alter-egos respectivos? Os restantes músicos vão entrando e vestindo-se de fato e gravata, enquanto Manuel João, isto é Lelo, ciranda pelas divisões com um fato castanho e umas socas transmontanas que ecoam pelo chão de madeira. De charuto pendurado na boca, a intervalos dá mais uma baforada e responde a chamadas de telemóvel com um auricular pendurado na orelha, o que lhe vale o comentário de um colega: "Este gajo está um yuppie da merda". Algumas das conversas são tão inacreditáveis como a entrevista que se segue. Muito do que se disse foi verdadeiro mas pouco verosímil. Como Lelo explicou, cada disco dos Ena Pá 2000 é um grito no deserto, infelizmente não há ninguém que os ouça. É que Portugal já foi um grande país, os pormenores mais interessantes da História é que "foram limados dos manuais de escola". E no entanto, garante, as crianças têm um grande sentido de humor, "porque se riem das coisas estúpidas" e vêm o Batatoon, "o programa mais obsceno que existe na televisão".Com os restantes músicos menos intervenientes, a conversa foi repartida com Manuel João Vieira/Lelo e Francisco Ferro/Ray Bonga, que sibilava as palavras. "É uma situação irónica", comentou: "Nestas entrevistas, o Manuel João é que pensa, enquanto me cabe a mim falar. Só que agora estou afónico e ele mais estúpido do que nunca". PÚBLICA - Nem sei que perguntas fazer. Toda a gente se queixa que os Ena Pá 2000 boicotam as entrevistas.Ferro - É mentira. Isso faz parte de uma cabala contra nós. Sabemos quem está por trás disto mas não queremos entrar em polémicas. L. - Adoptámos uma atitude mais compreensiva em relação a esse género de...(Toca o telemóvel de MJV e a entrevista é interrompida).L. - Adoptamos um género alternativo de dialéctica, que não se prende com o "rigor mortis" do discurso estereotipado da entrevista à banda de rock. São perguntas que encerram em si a resposta e isso é colaborar num jogo falso. A verdade não está aí. Nós reorganizámos a nossa verdade em torno de um conjunto de premissas às vezes fantasiosas, como contos de fadas. Também poderíamos seguir esse discurso chavão mas talvez então seja melhor definir desde já as regras da entrevista.Ferro e restantes membros do grupo - Shiiiiiii!L. - Está alguém aí? Quem está aí?Ferro - Quero sugerir perguntas originais, como por exemplo, "o que pensa do rock português?" Pensamos que a música portuguesa nunca esteve tão boa...L. - Nós deixámos de falar com os jornalistas há muito tempo, vivemos num universo fechado e quando alguém nos pergunta "planos para o futuro" começamos a falar da Virgem Maria nos ter aparecido num disco voador. É uma maneira de fazer as coisas mas também gostaríamos de entrar em contacto com o universo teórico e fabulístico das pessoas. Estamos aqui para as pessoas, e não para fazer uma espécie de grandiosa sessão de masturbação. Em relação a esse tema, já tinha inclusivamente a ideia de arrasar o estádio do Benfica e construir um enorme punhetódremo. Isso mostra o quanto estou preocupado com a dialéctica e com as pessoas. E com os sonhos. A linguagem do inconsciente nunca foi tão expressiva. L. - Nós ficamo-nos muitas vezes pelas ideias sem desenvolvê-las na prática, porque isso dá muito trabalho e nós achamos que o trabalho é sinónimo de prostituição.F. - Lembro aquela máxima, que dantes era escrita nas paredes: "O homem não é feito para trabalhar, a prova é que se cansa".F. - Pressupões que estamos a mentir mas o Desirat já foi escolhido para a próxima tripulação do Challenger, que é um voo especial em que vão destruir aquilo tudo. Não te passa pela cabeça que ele tenha sido seleccionado por sugestão do grupo? Se é esse o respeito que os jornalistas têm por nós, nem sei o que dizer.L. - Não temos o direito de estar aqui a comentar a vida de outra pessoa sem ela estar presente. Não adoptamos esse tipo de atitude portanto gostaria de mudar o rumo da conversa. L. - Passámos por um período de reorientação de todo o nosso trabalho, de toda a nossa carreira. Demos uma volta de 360 graus e ficámos na mesma. F. - Este tema da "odisseia" é uma homenagem ao vácuo que há no espaço, que foi mais ou menos o que aconteceu com a nossa carreira. L. - Sempre que estou na rua aparecem fãs a perguntar: "Então o grupo acabou, pá?" A todas essas pessoas quero dizer que estamos vivos e nos preocupamos com elas. L. - Sobretudo com a mente das pessoas e com a capacidade de poderem pensar num país onde o Estado é cada vez mais policial, embora não se note. Existe uma redução drástica da liberdade de imprensa, simplesmente a censura não é feita em termos políticos, mas de um consenso em torno de uma ideia de mediocridade que será o gosto típico do povo português, e isso é que vende. As coisas vão-se nivelando por baixo. É uma censura com interesses puramente económicos. F. - Parte um bocado do que as estatísticas dizem sobre o que é o gosto das pessoas quando elas têm 40, 50 anos. Acontece que as pessoas têm bom gosto aos 15 anos e, quando chegam aos 50, têm mau gosto. Devia haver umas estatísticas especiais que lhes permitisse dar o seu gosto quando estão no seu melhor. F. - Isso é uma pergunta indiscreta.L. - [mudando de assunto] Estavas a perguntar como é que se define a natureza censória dos media hoje em dia. Há um barómetro muito bom para ver a censura, que são os Ena Pá 2000. Quando o grupo não aparece é porque há censura. F. - Mas quando o grupo aparece há demasiado desleixe nos media. O meu pai pensa isso.L. - Não compreendemos o que é ou não é um palavrão. Segundo as pessoas que fazem a censura, um palavrão é uma palavra que não deve ser dita publicamente, porque tem conotações desagradáveis e, normalmente, tem conotações sexuais. Na Coreia, as palavras que designam os órgãos sexuais não têm uma conotação pejorativa, são termos mimosos, carinhosos. A nossa cultura tem o hábito de andar à volta dos palavrões e de não os dizer. Então opta por trocadilhos completamente atrasados mentais, nos quais vive desde o salazarismo. Não tem qualquer importância dizer uma caralhada, em termos de significação é quase nulo. Se o fazemos é porque continua a ser proibido. Se não fosse, teríamos deixado de o fazer. Até porque não se vendem discos desta maneira. L. - É saudável uma pessoa rir-se desses resíduos sociais. Pode ser uma arte menor, mas o que fazemos apesar de tudo é arte. A partir do momento em que não deixam espaço para que as pessoas se exprimam, elas passam para o outro lado, para actividades anti-sociais. No fundo somos uma válvula de escape, agradável e saudável. Queria dizer a todos os pedófilos do mundo: tenham calma. Sei que é muito chato e não quero ser moralista, mas não façam isso aqui ou na Madeira, que é chato para o Alberto João. Temos uma versão de uma música cantada pelo Max, "Noites da Madeira Belas", a que chamámos "Noites da Madeira Belgas". É um compromisso entre o humor e a tentação de outras coisas. L. - O humor é político. A caricatura é uma arma política. L. - Tínhamos uma música que era "Teresa Guilherme, deixa-me pôr o meu verme dentro do teu paquiderme", mas foi uma das que ficaram desgravadas no outro disco ["Opus gay"]. Temos algumas músicas literais e depois acontece que são logo essas que desaparecem. Portanto, jogámos pelo seguro para ver se não desapareciam mais músicas.L. - São os serviços secretos da televisão e do Estado. Estão interessados em que não nos alarguemos muito nas referências políticas.F. - Isso é esquizofrenia, claro. Mas tenho a dizer que o Manuel João é perfeitamente são da cabeça. Fui eu próprio que o tratei. F. - É um passatempo. Sou designer, uma coisa que não quer dizer nada. É o que digo à minha mulher quando saio de casa de manhã: vou fazer design.L. - O lado negro da vida do Francisco Ferro é extremamente interessante. Todos temos um lado negro. Eu tenho um lado mais negro do que branco, é uma questão das profundezas da mente.Olá!(Entra uma criancinha na sala, de resto várias crianças, filhos dos músicos, vão entrando e brincando pelas diversas divisões da casa).O ferro tem os seus passatempos, gosta de chicotear raparigas novas, de lhes marcar as costas...F. - É uma facção do design a que se chama body-design. E também quero dizer que aquilo que lhe disseram que o Joni faz é mentira.F. - Ui! L - Ponho compartimentos estanques entre as coisas. Ajuda-me bastante e a maior parte dos esquizofrénicos múltiplos são assim. Estar neste momento a concentrar-me numa coisa que é lateral [como a pintura] em relação a isto...L. - Exactamente. Somos de uma família tão pobre que quando éramos pequenos jogávamos ao "mikado" com esparguete. Estamos a tentar esquecer a nossa infância, mas de vez em quando custa-nos. Aconteceu muita coisa e é melhor arrumar as coisas nas prateleiras e elas estarem fechadas, porque há monstros lá dentro. Manuel Duarte - Os Ena Pá não são apenas cinco pessoas, com todos os seus alter egos são pelo menos vinte elementos. MD - É Manuel.L. - Ele acha que se chama Manuel, deixa-o pensar assim.L. - O meu psiquiatra é que poderia responder-lhe a isso de uma maneira mais correcta.(O gravador é direccionado para Ferro, que afirmou ter tratado Lelo)F. - Se tu me disseres quantas horas de noite, sem sol, é que existem por ano, são mais ou menos essas. São as horas que existem de escuridão.L. - Todos nós temos também o nosso lado amarelo e azul. Estamos aqui há 16 anos. E, a brincar, estamos a fazer um trabalho extremamente sério e pensado. As pessoas não se apercebem disso, por isso, excepcionalmente, nesta entrevista estamos a ser um pouco mais literais, para ver se de uma vez por todas esclarecemos estes assuntos. Gostamos de dar um pouco de asas à nossa imaginação e voar nesse universo encantado que é o dos Ena Pá 2000. L. - Estamos a pensar fazer um disco só de fados, extremamente sério. Resolvemos que a partir de agora, se continuarmos, vamos iniciar um ciclo de metamorfoses. Éramos girinos e vamos passar a ser sapos. E isso é infinito, porque o sapo quer ser boi, e o boi quererá ser outra coisa... F. - ... transformar-se num belo cisne.

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