Os sacos da vergonha
São 10 mil e uma associação que os representa reúne-se amanhã para sensibilizar as autoridades para os seus problemas. São ostomizados e vivem com um saco no abdómen, através do qual fazem as suas necessidades. Gastam muito dinheiro nas farmácias e são reembolsados tarde. A assistência também não é fácil: só há 14 enfermeiros especialistas no seu problema em Portugal.
Ana é ostomizada. Em Abril deste ano, descobriu que tinha um cancro no cólon. Com 52 anos de idade conta que já não esperava que a vida lhe pregasse tamanha partida. Foi operada com sucesso no Hospital e Vila Franca de Xira: o cancro desapareceu, mas fez questão de que não se esquecessem dele. Deixou no abdómen de Ana um orifício designado por estoma, pelo qual defeca para um saco. Ana tornou-se ostomizada, uma situação a que ainda não se habituou: "Às vezes só me apetece chorar." Deixou o emprego e encontrou na família o apoio necessário. Para Ana os dias passam devagar...A história de Ana é também a história de mais de dez mil portugueses que, dia após dia, tentam exorcizar o estigma de serem ostomizados. Um cancro do cólon ou do recto, uma infecção intestinal, ou pequenas bolsas semelhantes a nódulos no intestino levou-os à mesa de operações e a mudanças radicais no seu dia a dia: viver com um saco e ser incontinente."O grande problema dos estomas - explica Norberto Martins, médico cirurgião no Hospital de Vila Franca de Xira - é o facto de serem incontinentes e, no caso das colites ulcerosas, a situação é dramática. Há, no entanto, hoje em dia a possibilidade de se fazerem irrigações intestinais, sempre à mesma hora, de modo a que o intestino se habitue a um determinado ritmo de dejecção. Outro dos meios consiste na execução de determinadas manobras anatómicas, que se fazem durante a operação, em que se tenta tornar o intestino mais continente."Neste hospital, as operações mais frequentes no campo da ostomia são as colostomias definitivas ou temporárias. As temporárias aplicam-se em casos de lesão do ânus ou então quando o intestino ainda não se encontra preparado para uma operação definitiva, acrescenta Norberto Martins.Operação melindrosa, a ostomia é uma prova de fogo para qualquer cirurgião. Muitas vezes com os nervos à flor da pele, esforça-se para que os seus dedos não o traiam e para que a sorte não lhe fuja. É que, uma ostomia mal feita concorre sempre para que haja complicações pós-operatórias, como erosões de pele, diarreias, hemorragias, abcessos, oclusões intestinais.Sintomas que obrigam à intervenção do enfermeiro ostomaterapeuta, que presta os necessários cuidados de enfermagem, mas também ajuda o ostomizado na adaptação àquele elemento estranho que vê apenso ao seu abdómen, logo após a operação. O enfermeiro aconselha ainda sobre que alimentos o ostomizado pode ou não ingerir, sendo de evitar os que provocam gases ou que acentuam o cheiro das fezes. O ostomizado também não deve vestir roupa apertada.Mas o enfermeiro não cicatriza apenas as sequelas físicas mas também as psicológicas, como revela a enfermeira Célia Sanches, do Hospital de Vila Franca de Xira, no qual funciona uma consulta de apoio ao ostomizado. Durante as consultas, o ostomizado expõe as suas dúvidas e pode trocar experiências com outros ostomizados ou futuros ostomizados. "Tivemos o caso de uma senhora de 80 anos - revela a enfermeira - que se recusava a fazer a operação. Pusemo-la em contacto com uma senhora da mesma idade, já ostomizada e completamente auto-suficiente, e mais tarde a senhora aceitou fazer a operação". Célia Sanches acrescenta que muito há a fazer no complexo mundo destes doentes: "O problema começa logo na aceitação e os médicos contribuem muito para isso, porque, em vez de dizerem ao doente que vai ficar ostomizado, dizem que poderá ficar ostomizado." Uma situação criadora de dúvidas e expectativa que em nada beneficia o doente, afirma. Daí que Célia Sanches saliente ser cada vez mais premente o encaminhamento dos doentes para o enfermeiro antes da operação, para que depois não digam: "Afinal fiquei mesmo com um saco" e comecem, desde logo, a experimentar os diferentes tipos de dispositivos: sacos, tampões ou "stoma caps". O ostomizado tem hoje ao seu dispor diferentes produtos, desde sacos reutilizáveis e anti-odor, até métodos de irrigação intestinal. Mas há um problema que se arrasta há anos. Quando o ostomizado compra na farmácia o seu equipamento, gasta em média onze a doze contos por mês e só é reembolsado muito mais tarde. Informa Maria Augusta Soares, directora técnica do CEDIME (Centro de Documentação e Informação Medicamentos da Associação Nacional de Farmácias (ANF)): "A nível estatal, o que existe é um sistema de reembolso limitativo. O reembolso não ultrapassa uma determinada quantia e não há um preço fixo para esses produtos. O IVA é de 17 por cento e a ANF tem-se esforçado para que desça para cinco por cento". Sobre qual tem sido a resposta do Ministério da Saúde, Maria Augusta Soares afirma: "Não há resposta!"A enfermeira Célia Sanches confirma e acrescenta que as dificuldades na aquisição dos dispositivos são o pão nosso de cada dia para os ostomizados. A enfermeira conta que, no caso dos reformados, a situação chega a ser confrangedora, porque têm que recorrer, muitas vezes, ao apoio dos vizinhos para comprar os produtos: "Há algum tempo atrás tivemos de ser nós, as enfermeiras do hospital, a ajudar no financiamento do equipamento para um reformado. Fomos pedir dinheiro emprestado aos vizinhos do senhor e só assim pudemos comprar o equipamento. "É que o Estado paga mas é sempre tarde e a más horas", reconheceu o médico Norberto Martins.Quando já tem o dinheiro para comprar o equipamento, depara com pouca variedade de produtos nas farmácias: "O número de produtos é escasso, assim como a informação que os farmacêuticos têm sobre a ostomia", diz Maria Augusta Soares. O farmacêutico pouco pode ajudar o doente e o enfermeiro também não. Porque em Portugal há apenas 14 enfermeiros ostomaterapeutas. Os que existem tiraram o curso em Espanha. Nas universidades a informação dada aos futuros enfermeiros e farmacêuticos é residual. Os médicos pouco ou nada conseguem fazer e o Estado continua a ignorar a realidade de 10 mil portugueses. Norberto Martins comenta: "Hoje só se fala da sida enquanto outros são pura e simplesmente ignorados."É tendo em conta uma situação que se caracteriza pelo escasso número de enfermeiros ostomaterapeutas e pela necessidade de conseguir a uniformização dos preços dos produtos e os reembolsos no momento da aquisição que a Associação Portuguesa de Ostomizados (APO) realiza amanhã uma mini-sessão solene para sensibilizar as entidades oficiais para o problema. Pretende-se também contribuir para o crescimento da APO. A associação conta com pouco mais de 1800 sócios, quando existe um número superior a 10 mil ostomizados e a informação que lhes chega é muito escassa. A associação existe desde 1979 e tem contado apenas com os parcos apoios do Secretariado Nacional de Reabilitação, afirma António Cabral, presidente da APO.António Cabral, ele próprio ostomizado, admite que teve de ser forte: "Na altura, tinha os meus filhos para criar e não queria que eles se apercebessem do meu problema", confessa.Mas António Cabral tem esperanças que amanhã comecem a soprar ventos de mudança na sua vida e nas vidas dos muitos ostomizados que existem no país.