Um mundo de canções
Como explicar às crianças o que é a vida numa quinta? A Câmara de Braga teve a ideia de criar um espaço aberto e exterior à escola, onde se aprenda a tirar leite às vacas e a fazer pão. O projecto é para ser concretizado durante o próximo ano, na freguesia de Real, a dez minutos da cidade, no terreno contíguo ao Convento de S. Francisco, que, por sua vez, irá ser convertido em pousada da juventude.
Completam-se hoje precisamente trinta anos sobre o dia em que surgiu nas bancas o primeiro número daquela que podemos considerar a primeira revista portuguesa de música moderna, o "Mundo da Canção". Editada no Porto, por Avelino Tavares - um homem das artes gráficas que nutria um forte interesse pela música -, o primeiro número da revista, que foi também por ele inteiramente escrito, paginado e impresso, apresentava na capa a fotografia de Francisco Fanhais, um jovem padre baladeiro que, nesse mesmo ano de 1969, tinha emergido na ribalta da música portuguesa, após participação no popular programa de televisão "Zip-Zip", de Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado.Ao longo de catorze anos de publicação - com uma periodicidade mensal, mas que, nos últimos tempos, se tornou irregular -, a pequena "Mundo da Canção" em breve passou a entremear a divulgação das letras das canções mais em voga com artigos de crítica musical e de denúncia do nacional-cançonetismo, que não deixavam de provocar alguma perplexidade - e alguns protestos - nos leitores "não consciencializados" ou menos exigentes nos critérios de apreciação musical. Para além disso, nestes primeiros números, manifestou-se, inclusivamente, uma atitude um tanto ou quanto displicente nas respostas publicadas na secção de correspondência dos leitores, criticando-se abertamente o conteúdo das cartas que aqueles enviavam à revista, especialmente das que acompanhavam o envio de poemas para publicação. Na referida secção, denominada "Posta Restante" - que, posteriormente, se subdividiu com a criação de uma rubrica específica para manter correspondência sobre os poemas enviados -, encontravam-se missivas de alguns nomes hoje em dia sonantes da nossa praça pública, que apresentavam sugestões e criticavam ou aplaudiam o conteúdo da revista, ao lado de "jovens inconscientes" que solicitavam fotografias de Roberto Carlos (em ponto grande), pediam a publicação de um folhetim ou anunciavam a sua ambição em tirarem o "curso de doutora" (nº 7), suscitando, por vezes, um não dissimulado gáudio nas respostas dos responsáveis por aquela rubrica.Este posicionamento crítico e "anti-establishment" da redacção do "Mundo da Canção", alargada, logo a partir do nº 2, a nomes como Viale Moutinho, Maria Teresa Horta (delegada em Lisboa) ou Jorge Cordeiro, e mais tarde a Arnaldo Jorge Silva, Fernando Cordeiro e Tito Lívio, era particularmente evidente na apreciação dos poemas que os leitores enviavam à revista. Embora por vezes os publicasse - numa rubrica intitulada "Poesia 70" -, os poemas eram frequentemente alvo de uma apreciação crítica implacável, que deverá ter provocado numerosas frustrações e o abandono prematuro de muitas e promissoras carreiras poéticas . Os inúmeros comentários demolidores - chegaram, inclusivamente, a aconselhar um leitor a "não mostrar os seus versos a ninguém" (n º 11) - originavam por vezes reacções de apreensão por parte de quem enviava poemas, como a de um outro leitor, do Entroncamento, que chegou mesmo a escrever: "Não mando mais [poemas], porque se gozarem esse, não podem gozar mais, mas se gostarem é só pedirem"; ao que o coordenador da secção respondeu, laconicamente: "Não pedimos" (nº 11).Mensalmente, pela módica quantia de 3$50, os leitores encontravam nas páginas da revista as letras das músicas que integravam os "tops" da música popular - então razoavelmente difíceis de encontrar, principalmente as de origem anglo-saxónica, tanto mais que eram poucas ou nenhumas as possibilidades que então existiam em aceder ao que, no domínio musical, se fazia no estrangeiro, principalmente para as muitas centenas de leitores da revista que viviam na "província". Deste modo, é compreensível que os primeiros números da revista tenham esgotado rapidamente, o que motivou um aumento da tiragem, a qual chegou a ultrapassar os vinte mil exemplares.Ao mesmo tempo que inovava com a publicação de artigos de crítica musical - ficou célebre um artigo de Jorge Cordeiro a desancar nos Moody Blues (nº 3) - e contava com a colaboração de músicos como José Cid ou Jorge Lima Barreto, a revista lançava-se noutro tipo de iniciativas, bem de acordo com a época, como era o caso dos convívios musicais. Assim, em 27 de Março de 1970, promovia o 1º Convívio "Mundo da Canção", no qual mais de duas centenas de jovens se comprimiram no exíguo espaço do piso inferior da Galeria Alvarez, no Porto, para escutar Manuel Freire, outro baladeiro, que ficou famoso por musicar o poema "Pedra Filosofal" de António Gedeão.O número de Dezembro de 1971 - que inaugurou o terceiro ano de publicação regular e ininterrupta da revista - marcou o início de uma "nova fase" e pode considerar-se um ponto de viragem relativa na história do "Mundo da Canção". Esta "nova fase" chegou até a ser "teorizada" por um leitor que, citando Feuerbach ("a prática resolverá as dúvidas que a teoria não resolveu"), considerou a revista dotada, a partir de então, com "uma armadura teórica fortemente reforçada e correctamente situada", num texto de opinião efusivamente saudado pela redacção. É também por esta altura que Mário Correia, um assíduo leitor da revista que já tinha colaborado em números anteriores, passa a colaborador efectivo da revista, tornando-se, a partir de então e até a mesma se deixar de publicar, um dos seus principais impulsionadores.Acompanhando a grande transformação da música portuguesa ocorrida a partir do memorável Outono/Inverno de 1971 - com a publicação dos álbuns "Cantigas do Maio" (José Afonso), "Gente de Aqui e de Agora" (Adriano Correia de Oliveira), "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" (José Mário Branco) e o EP "Romance de Um Dia na Estrada" (Sérgio Godinho) -, o "Mundo da Canção" vai proceder a várias alterações. Embora se mantenham as principais rubricas, a revista vai surgir com um novo formato e novas secções, nomeadamente recensões de álbuns recentemente publicados, análises críticas das obras de intérpretes e grupos da actualidade, reportagens sobre os festivais de jazz de Cascais ou do primeiro Festival de Vilar de Mouros. A boa música portuguesa começa a disputar as páginas à música anglo-saxónica, embora se deva reconhecer que, já anteriormente o "Mundo da Canção" prestara atenção a outras sonoridades - francesas (Serge Reggiani, Jean Ferrat, George Brassens), belgas (Jacques Brel), espanholas (Patxi Andion, Água Viva, Joan Manuel Serrat, Paco Ibañez) - hoje em dia em grande parte banidas do mercado discográfico pela avassaladora influência das multinacionais anglo-americanas. Sintomaticamente, a capa daquele número de Dezembro de 1971 é consagrada a José Mário Branco - na época, exilado em França -, ao mesmo tempo que, pela primeira vez, se publica publicidade ao "O Comércio do Funchal" - um jornal com uma grande importância política naquela época e do qual hoje em dia parece que toda a gente se esqueceu.Esta orientação acabou por chamar a atenção da censura, que, na sua costumada actuação arbitrária, entendeu "retirar do mercado" o nº 34 (Dezembro de 1972) da revista, embora não tenha conseguido impedir a distribuição e a venda de uma boa parte da edição, entretanto já efectuada. Registe-se que, para além do destaque dado, na capa, a cinco novos álbuns nacionais então publicados - entre os quais se contavam os novos trabalhos de José Mário Branco, José Afonso e Mário Viegas -, este número não apresentava conteúdos diferentes dos que anteriormente já tinha publicado.O editorial do primeiro número publicado após o 25 de Abril, intitulado "Construir uma revista popular", inaugurou um período de grande conflitualidade interna, marcado por divisões ideológicas inultrapassáveis, que se traduziu de imediato na quebra da periodicidade. Ultrapassadas as perturbações internas, a revista ainda se publicou durante quase mais uma década, acabando por se extinguir, formalmente, em 1983, com a edição do nº 68. Contudo, o seu nome permanece, ainda hoje em dia, associado à realização do Festival Intercéltico e do Festival Europeu de Jazz, organizados por uma pequena empresa homónima, de distribuição discográfica, uma prática que, aliás, se tinha iniciado ainda durante o período de publicação da revista, pelo que não será descabido afirmar que o "Mundo da Canção", trinta anos após o início da sua publicação, já se transformou numa das instituições da cidade.