O que restou dos anos 90
Não se pode ficar indiferente a "Glamorama", de Bret Easton Ellis e a "Modelos", de Jay McInerney. Ou se gosta muito ou se odeia. Depois de os lermos fica a pergunta: Que raio fizemos nós aos anos 90?
Bret Easton Ellis e Jay McInerney são amigos ou talvez só se suportem um ao outro. Publicaram dois romances com celebridades e modelos como personagens. O primeiro escreveu "Glamorama", um romance sobre a conspiração. O segundo lançou "Modelos/Model Behaviour", sobre os valores perdidos. Ambos são sobre a ilusão e a realidade. Os livros devem ler-se em conjunto não só porque se passam no mesmo ambiente, mas também porque os dois escritores andaram a mandar recados um ao outro.Bret Easton Ellis resolveu incluir em "Glamorama" uma personagem que Jay McInerney criou: Alison Poole. Bret já disse que brinca com as personagens de Jay, mas não deixa que ele brinque com as suas. E podemos ver pelo tom como é a relação entre os dois. Bret usou pela primeira vez uma das personagens de Jay (do livro "Story of My Life") no "Psicopata Americano". "Se a minha memória não me engana foi porque o Jay me tinha chateado de alguma maneira nessa semana, e por isso decidi que a melhor forma de lhe responder era fazer a Alison Pool ter um encontro com Patrick Bateman [o serial killer]. Sei que isto pode parecer passivo-agressivo, mas às vezes é a única forma de lidar com o Jay. Acho que Jay ficou lisongeado e achou divertido - e também desejou que eu nunca o tivesse feito!" Mas McInerney arranjou uma maneira de se vingar: como Ellis demorou oito anos a escrever "Glamorama", Jay conseguiu publicar primeiro que ele um romance com a mesma temática."Modelos" é um romance mais tradicional e o livro finaliza com um apêndice de sete contos. "Glamorama" é um romance experimental, embora Ellis diga que se preocupou "muito" com a narrativa. Quem não estiver com a disposição adequada para o ler, pode ter uma grande desilusão, Mas o livro é genial para quem entrar no jogo. "'Queres saber como é que tudo isto acaba?' Perguntou Chloe de olhos fechados. Disse que sim. 'Compra os direitos', segredou-me ela." Este é um diálogo do último capítulo de "Glamorama". Talvez seja a chave para se compreender toda a história. Mas como o tema que aqui se trata é a conspiração, nunca se chega a ter a certeza. Ellis dá-nos pistas, mas não dá as respostas todas. A personagem principal de "Glamorama" é o modelo e aspirante a actor Victor Ward (este é o seu nome artístico). É filho de Johnson, um senador norte-americano que trabalha em Washington D.C.. Victor é "o rapaz de que se fala no momento", um homem super irritante que termina as frases todas com "querida/o" e passa a vida a citar versos de canções. Está a abrir com um sócio aquele que será o bar mais "in" de Nova Iorque; anda a ter sexo com a namorada deste e com mais umas quantas. Tem uma namorada oficial, Chloe Byrnes ("lábios cheios, ossos magros, seios grandes - implantes -, pernas longas e musculosas, maçãs-do-rosto salientes, grandes olhos azuis, pele imaculada, nariz adunco, cintura de 69 cm, um sorriso que nunca se contorce numa careta, uma conta de telemóvel que costuma rondar os 1200 dólares por mês, odeia-se mas provavelmente não devia."), que é mais conhecida do que ele. As suas preocupações são o ginásio, as roupas de marca, enrolar charros, tomar drogas e conseguir um papel no filme "Flatliners II". No romance as personagens têm conversas onde constantemente discutem a vida dos outros. Sendo que os outros são Kate Moss, Cindy Crawford, Richard Gere, Julia Roberts, Alicia Silverstone, etc, etc, etc. Aqui ficam alguns exemplos:"Ouvi dizer que o Dave Pirner anda muito amigo da heroína; eh, não deixes a Chloe aproximar-se muito do Davey. E também ouvi dizer que a Winona é capaz de voltar para o Johnny se a Kate Moss desaparecer de vista ou um pequeno tornado a levar de volta para Auschwitz, coisa por que todos ansiamos". Victor está numa sessão fotográfica da revista "George" e conta: "John F. Kennedy, Jr., que é um tipo jeitoso, aperta-me a mão e diz coisas como, 'Sou um grande admirador do seu pai', e eu digo, 'Ai sim?', embora me sinta basicamente calmo e bem divertido, há um momento de embaraço". Algumas das celebridades já morreram, mas Bret optou por não actualizar o livro. Não se cansa de repetir: as celebridades, elas próprias, não são a mensagem. Só a lista de nomes é que o é. A determinada altura um homem encontra-se com Victor e oferece-lhe uma grande soma de dinheiro para que este parta para a Londres à procura de Jamie Fields, uma colega que fugiu para a Europa para integrar um grupo terrorista. A sua missão é fazer com que ela volte aos EUA. Victor está com a vida atrapalhada, aparecem fotos dele em lugares onde tem a certeza de nunca ter estado, a fazer coisas que nunca fez. E é a partir daqui que se entra num livro completamente diferente. Bret Ellis explicou num "chat online" que a Barnes and Noble organizou na Internet em Janeiro que a personagem de Victor Ward é um compêndio dos traços de homens da sua geração que acha aborrecidos e enfadonhos. Acrescentou que quando estava a escrever "Glamorama" se sentia oprimido pela tirania da perfeição física que a sociedade nos impõe constantemente: "A ligação que eu fiz entre o mundo da moda e o terrorismo foi porque ambos operam de forma a fazerem com que as pessoas se sintam inseguras. Isso é tão opressivo."É por isso que quando vai para a Europa, Victor entra num autêntico pesadelo. Armam-lhe uma cilada em que se vê a praticar actos de terrorismo e a ser chantageado. Depois há pormenores estranhos: "confettis" aparecerem em vários locais antes de acontecer algo de terrível. Personagens que afinal não são quem pensávamos.A primeira parte do livro é uma espécie de comédia de costumes e a segunda mais sinistra e diabólica. Há cenas de muita violência - a descrição de um aborto, a descrição de vários atentados, uma cena de tortura de um homem seguida da sua morte, a descrição da queda de um avião por causa de uma bomba. Há também muitas cenas de sexo. Uma delas é primordial. Começa com Victor, Bobby e Jamie no chuveiro e termina com Victor, Bobby e Jamie na cama. Demora um capítulo inteiro e aí acontece mais ao menos tudo que pode acontecer numa cena de sexo entre dois homens e uma mulher. A descrição é clínica.Na segunda parte do romance todas as pessoas estão a ser filmadas ou fazem parte de um filme. As personagens viram-se para Victor e dizem-lhe "isso não aconteceu, isso não estava no guião". Aqui tudo o que parece, nem sempre é. Nas palavras de Bret Easton Ellis este é "um romance que nos lembra que um mundo em que as pessoas são julgadas pela sua aparência pode também ser um mundo onde nada é como parece ser." E isto resume tudo. No último capítulo o narrador muda. Há um Victor ou há dois? Todas as personagens tem um "lookalike"? A primeira parte do livro está cheia de nomes dos actores de "Twin Peaks" e não é por acaso. O livro está cheio de referências a gémeos. Há um clube que se chama "Doppelganger"; o grupo de rock a que Victor pertencia chamava-se "Pussy Beat" mas depois passou a chamar-se "Impersonators"; a canção "Even Better Than The Real Thing" é repetida várias vezes; há uma referência ao grupo "Aphex Twin" mas Ellis escreve "Aphex Twins", intencional ou gralha? No final do livro o verdadeiro Victor reaparece, ainda preso no seu pesadelo conspirativo, e tudo se torna claro numa cena inspirada no filme "Lost Highway", com Patricia Arquett, que por acaso também é citada em "Glamorama".A acção de "Model Behavior" decorre em Manhattan e as personagens também falam de "Linda e de Kyle", de "Richard e Cindy" e de "Kate". E falam de Bret Ellis, e de Auster e de Tom Jones.O narrador é Connor McKnight, um escritor que tem as suas ambições literárias reduzidas a escrever sobre celebridades para uma revista de moda (para Jay a celebridade tornou-se nos anos 90 aquilo que a cocaína foi para os anos 80), viveu no Japão e é adepto do zen. Logo no início ficamos a saber que Connor não tem dado a devida atenção à namorada, uma modelo, Philomena. Tem um amigo meio louco (Jeremy), também escritor, vegetariano militante, neurótico, cuja sanidade balança entre o medo da reacção ao seu próximo romance e a preocupação com o destino do seu cão. A própria vida de Connor também não está muito boa: Philomena abandonou-o sem razão aparente; o editor está furioso porque ele não consegue fazer o perfil de um actor que o evita a todo o custo (mais tarde vai-se saber porquê mas é melhor não revelar porque perde a graça); e o seu contrato está em vias de não ser renovado. Deprimido, vira-se para a família, mas a irmã precisa mais de um ombro do que ele (deixou de comer por causa de um divórcio) -, e quando os seus pais resolvem vir à cidade, o pesadelo aumenta. Para agravar tudo isto Connor é assediado e perseguido por "e-mail" por uma fã.Os diálogos também são irónicos: "- Quem é aquele cabrão daquele anão ali que me disse que tinha ' gostado imensamente' do meu primeiro livro? Seguindo o nariz aquilino de Jeremy, vislumbrei Kevin Shipley, assassino de livros da Beau Mode, em conversação com o New York Post. - Meu Deus, espero que não o tenhas insultado. É o Kevin Shipley. - Disse-me que o comprou na mesa das sobras na Barnes and Noble e eu disse-lhe que me sentia profundamente honrado por ele achar bem empregue o seu dólar e noventa e cinco. - Reza para ele não fazer a crítica do próximo. O seu teclado é feito de dentes humanos. - Sim, mas como é que ele lá chega?".