O poema que se pede em tradução
Se o acto de traduzir for tentado, como nesta versão, com intensidade absorvente e talentosamente conseguido, pode reanimar uma grande obra clássica e dar-lhe novo e fáustico alento, espalhar por renovado solo grãos imprevistos prontos a germinar.
O trabalho de João Barrento que agora surge responde a um forte desafio: porque está em causa Goethe, epicentro da literatura alemã, e, dentro da sua vasta obra, "Fausto", projecção do próprio homem Goethe. "Os textos, nomeadamente os ditos 'grandes' - escreve o tradutor - pedem para ser traduzidos". Ora, satisfeito o pedido podem surtir efeitos inesperados, imponderáveis, como quando Goethe veio a preferir a versão de Nerval do Primeiro Fausto à sua! A língua francesa, trabalhada com mestria e mistério, rejuvenescia o poema que ele tinha tecido, lido, pensado e julgado muitas vezes, talvez demasiadas vezes, mas ainda o rondava: a tradução trazia-lhe, nos segredos e sons de outra língua, a frescura do mito.Se o acto de traduzir for tentado, como nesta versão em português, com intensidade absorvente e talentosamente conseguido, pode reanimar uma grande obra clássica e dar-lhe novo e fáustico alento, espalhar por renovado solo grãos imprevistos prontos a germinar. No mausoléu de um imperador japonês descobriu-se a semente enorme de uma magnólia extinta. Quando os sábios renunciaram a analisá-la com minúcia, ponto a ponto, dividindo-a, perscrutando-lhe conteúdos, alguém decidiu, num acto de ousadia, semeá-la. No outro ano uma árvore portentosa irrompeu da terra, para surpresa e fruição gerais.O texto da Introdução situa "Fausto" no cenário das literaturas europeias, e também da vida de Goethe, que foi possuído por ele desde a infância, em insatisfação nunca apaziguada. Aí, fala-nos Barrento da arte de traduzir, trabalho críptico entre todos. No curso do poema, as muitas métricas, tonalidades e timbres do canto - reflectindo facetas inesgotadas do escritor, mil modos de estar pelo mundo, de ser e de parecer, várias idades da vida percorridas - propõem ardis ao tradutor, que sempre encontra o dizer ajustado e o verso propício.Traduzir um Fausto significa trazer à língua-mãe, pelo secreto filtro que conduz de uma língua a outra, tempos de cumplicidade e confronto entre autor e protagonista: porque escrever um Fausto é jogo complexo, onde o escritor extrai do seu ser os contornos da personalidade dele (indecisos e turbilhoantes como os desenhos de Ilda David), alimentando-a com os desassossegos que o abalam. O narrador sai de si próprio para, de fora, tentar a sua fenomenologia, e a si regressa por forma a transvasar nele inquietações, desejos e dúvidas que o habitam - e que tudo se torne literatura.Assim, transpor algo da própria essência para uma figura mítica que de tempos a tempos reaparece na cultura do ocidente, constitui projecto exaltante e arriscado - e o risco fulcral consiste em que o escritor não se consiga libertar do protagonista, seu eterno rasto e sua sombra (talvez por essa razão, o Fausto de Chamisso perdeu a sombra!). De onde a proveniência de Faustos inacabados - como o de Valéry, repensado e refeito no decurso de décadas; e o de Goethe, escrito ao longo da vida longa do autor.Os enigmas da tradução e suas subterrâneas forças são expressos já pelo próprio Fausto, quando, ao regressar ao gabinete de trabalho na companhia do cão que o segue no passeio com Wagner, e no qual se dissimula o Maligno, quer repetir Lutero e traduzir a Bíblia para alemão (versos 1216 a 1237). Arriscada tarefa, essa de duplicar, tentando decifrá-la, a palavra divina que, proferida no Começo, se traduziu no mundo. Fausto detém-se perante a representação e paradigma da Criação: No princípio era o Verbo. E os movimentos da razão e da pena levam-no, por via do seu espírito inquieto e das turbulências do "espírito do tempo", a mudar o Verbo em Pensamento, e este em Energia, e enfim Acção, anunciando Schopenhauer e os tempos para vir, e alterando os fundamentos mesmos do Ser, do Tempo, da História e do Destino. Eis como o acto de traduzir, antes ainda da entrada em cena de Mefistófeles (pelo menos sob forma explícita), logo perde a inocência.A ânsia de Fausto de rivalizar com o Criador reaparece na tragédia. No "Laboratório", um Fausto cabalista intenta mesmo obter um golem, e consegue-o: mito hebraico dentro de um mito germânico. O homúnculo arrancado à matéria anuncia os homens-máquina do futuro, que Mefistófeles, com argúcia, despreza - ele que, concerteza, conhece passado e porvir em pormenor: "E não percebem que estão a ser usados / Por Asmodeu: ele é quem lança os dados. / Dizem que lutam pela sua liberdade; / Escravos são, contra escravos, na verdade." (6960-54).Fausto toma todas as vantagens sobre o seu criador: não só o rejuvenescimento e a aura mítica, mas o acesso à satisfação do desejo e ao esplendor do conhecimento, pois que após o pacto dispõe de um poderoso servo. Contudo, Mefistófeles pode negar subrepticiamente o que promete: tal é a sua mais íntima natureza, com que a si mesmo se apresenta e define: "Eu sou o Espírito que só sabe negar! / E com razão: tudo o que nasce e vês / É digno apenas de morrer outra vez. / Melhor seria, pois, nada nascer." (1333-41).Difíceis e duros, senão ínvios, são os percursos pedidos para o conhecimento levado aos seus limites, além dos seus limites, até infaustos fados:Fausto: "E a via ?"Mefistófeles: "Não há! Para o nunca exploradoE inexplorável, para o nunca imploradoE inimplorável. Estás pronto então? -Não há cadeados nem ferrolhos pr'abrir,Por solidão sem fim tu terás de ir.Sabes o que é um ermo, a solidão?" (6222-27).