Um órgão para o ano 2000
O início do Festival de Órgão Jubileu do Ano 2000 será assinalado com um concerto ao som do órgão do Evangelho na Basílica do Palácio Nacional de Mafra. É um dos seis órgãos de um conjunto histórico único no mundo que começou, finalmente, a ser recuperado. Assim se procura lançar as bases de uma escola de organaria nacional e revitalizar o monumento através da música.
Debruçado sobre o teclado do órgão do Evangelho, mestre Dinarte Machado, testa a qualidade do som que sai dos tubos deste instrumento. O trabalho de restauro a que se entregou desde Abril está agora na recta final e ocupa-o todos os dias até às duas ou três da manhã, para que tudo funcione em condições no dia do concerto inaugural do Festival de Órgão Jubileu do Ano 2000, marcado para o próximo dia 11.Situado à direita do altar, o órgão do Evangelho é um dos seis órgãos históricos instalados na Basílica que constituem um "conjunto único no mundo", como nota Margarida Montenegro, directora do Palácio Nacional de Mafra. Tem cerca de dez metros de altura e quase sete mil peças, entre as quais se contam 1587 tubos, o maior dos quais mede 220 milímetros de diâmetro e o mais pequeno cerca de quatro milímetros. Os seis órgãos de Mafra foram idealizados por D. João V, pois analisando a Basílica percebe-se a intenção de aí instalar os instrumentos. Durante a sagração da igreja em 1730 há relatos de seis órgãos portáteis, mas seria apenas durante a regência de D. João VI que os órgão definitivos foram aí instalados, num trabalho de António Xavier Machado e Cerveira e a António Peres Fontanes. Foi para este conjunto de instrumentos que vários compositores da época escreveram peças que só aí podem ser executadas. Passados quase 200 anos, o restauro do órgão do Evangelho marca o início do programa de recuperação do conjunto de instrumentos, acção que se insere no projecto de revitalização do Palácio de Mafra através da música, como explica Margarida Montenegro.Apesar da realização de um congresso internacional de órgãos em 1994 para chamar a atenção relativamente à importância deste conjunto histórico, com o objectivo de arranjar mecenato para o seu restauro, avaliado em 300 mil contos, o apoio só chegou este ano por parte de uma instituição bancária. O Barclays Bank contribuiu para o restauro de dois órgãos, com um investimento de 30 mil contos, financiamento concedido em parceria com o Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar), que investe igual quantia. O restauro foi entregue a Dinarte Machado, organeiro com larga experiência, que conta com um consultor permanente, o organista João Vaz. Depois de um estudo pormenorizado dos órgãos de Mafra durante cinco anos, Dinarte Machado iniciou a intervenção no mês de Abril, com a preparação e desmontagem do instrumento, que incluiu o seu revestimento com 400 peles de carneiro. Esta fase do restauro compreendeu também um trabalho de atelier em que chegaram a participar 12 pessoas, que se dedicaram ao arranjo das mais variadas peças, desde os someiros aos foles. O mestre organeiro está agora entregue à harmonização e afinação de todos os tubos, "o trabalho que exige maior concentração", na sua perspectiva, e que depende exclusivamente de Dinarte Machado. Esta acção está a ser acompanhada por uma comissão de apoio científico, constituída por personalidades nacionais e internacionais (espanhóis e italianos) nas áreas da organologia, musicologia e organeria, que definiu a filosofia e a metodologia da intervenção. Nascido na América e residente na ilha de S. Miguel, nos Açores, Dinarte Machado tem 40 anos e conta no seu currículo com a recuperação de 23 órgãos de um total de 54 existentes nos Açores, entre os quais o da Igreja Matriz da Calheta, na ilha de S.Jorge, e a construção do maior órgão português deste século na Sé Catedral de Angra. A opção de viver no arquipélago prende-se com o seu interesse em trabalhar "com instrumentos no seu estado original", o que é ainda possível nos Açores. Mas a sua escolha implica ter de se confrontar com inúmeras dificuldades, como ter de encomendar em Lisboa e no estrangeiro a maioria das peças e dos materiais de que necessita. "Chego a importar madeiras da Alemanha e do Brasil", diz. As dificuldades não se situam apenas no plano técnico, relacionando-se também com a "falta de sensibilidade" para os assuntos do património, considera Dinarte Machado. Exemplifica com um episódio passado em 1990, precisamente com o órgão da Igreja Matriz da Calheta da segunda metade do século XVIII. Ele não queria acreditar quando, de repente, o avistou no meio de um monte de lixo quase a ser despejado. "A ferramenta mais fina que utilizaram para o desmontar foi um pé de cabra", conta. Dinarte Machado recuperou-o e devolveu-lhe o "som impressionante". No dia 11, às 21h, o órgão do Evangelho vai encher de música a Basílica de Mafra pelas mãos de António Duarte, Rui Paiva e João Vaz, no primeiro concerto do Festival de Órgão Jubileu do Ano 2000, que se prolongará até 16 de Janeiro, com espectáculos, sempre às 17h30, nos dias 12, 19, 26 de Dezembro e 2, 8 e 16 de Janeiro. Para Margarida Montenegro, o restauro destes instrumentos históricos é também um "forte incentivo para a criatividade dos compositores" e uma forma de lançar "as bases de uma escola de organaria nacional."