A febre da ficção portuguesa
Há meses que dois jornalistas da RTP1 investigam os efeitos do Bug do ano 2000 em Portugal. Quiseram fazer o retrato o mais preciso possível do que vai acontecer na hora H - o momento em que os sistemas informáticos terão de reconhecer o fim do ano de 99. Será uma hecatombe? Seis programas, algumas entrevistas, muita informação depois, a convicção é que o colapso, a existir, será diminuto.
Na semana passada, os quatro canais generalistas portugueses emitiram "sitcoms", telenovelas e séries dramáticas produzidas em Portugal totalizando 12 horas de emissão. Em cada dia da semana os espectadores tiveram em média três escolhas possíveis.A RTP1 apresenta actualmente "Esquadra de Polícia", "A Lenda da Garça", "Não És Homem Não És Nada", "Nós os Ricos", "As Lições do Tonecas" e "Companhia do Riso". A SIC tem no ar "Um Sarilho Chamado Marina", "Clube dos Campeões", "Médico de Família", "Jornalistas", "A Loja do Camilo" e "Residencial Tejo". A TVI apresenta "Todo o Tempo do Mundo" e a RTP2 "As Duas Faces de Cláudia".Do quase nada passámos a uma presença constante da ficção portuguesa nos canais nacionais. Ainda há dois anos, André Gago queixava-se, numa conferência de imprensa de actores, da falta de trabalho nesta área. Ele próprio é agora protagonista na novela da RTP1. Juntando-se às séries os filmes portugueses apoiados pela SIC e pela RTP e ainda os telefilmes em preparação pela SIC com subsídio público verifica-se que é hoje difícil que alguém se queixe de que a ficção na televisão portuguesa não fale a nossa língua e de assuntos portugueses. Perante este quadro, uma justificação utilizada pelo governo para nem admitir a hipótese de privatização de parte dos canais da RTP - a de que essa privatização seria contra a «independência nacional» pois a RTP, por ter programas em português, é um «factor de coesão»... - revela-se em todo o seu esplendoroso absurdo.De facto, há alguns anos atrás a RTP já deveria ter essa função de «coesão nacional» quanto à ficção portuguesa e não a assumia por estar em monopólio. Foi precisamente quando as regras do mercado entraram em acção que os operadores de televisão corresponderam ao anseio da audiência de ter ficção portuguesa nos seus canais. Quer dizer, a «coesão nacional» não se faz por decreto, faz-se com um país a fervilhar de ideias e de actividade em liberdade. Há 10 ou 20 anos, com monopólio estatal, a «coesão nacional» fazia-se com programas estrangeiros legendados. Nessa altura, ninguém se lembrava do argumento da «coesão» para defender a existência do monopólio, hoje o argumento é necessário para defender a televisão do governo. A política é um perpétuo argumento. A verdade é que foi por existir televisão privada e concorrência que passou a haver muito mais ficção portuguesa e não por causa do papel de «coesão nacional» da RTP.Não quer isto dizer que não tenha havido, na RTP, um esforço maior de apresentar produção nacional nesta área: a RTP apresenta cerca de metade da ficção portuguesa na semana referida (cerca de seis horas na RTP1 e apenas 50 minutos na RTP2). Mas a estratégia de filmar em português é consequência das regras do mercado, da concorrência. Quanto à qualidade da ficção portuguesa na televisão, há vários aspectos a considerar. Dos vários pontos de vista técnicos (actores, iluminação, montagem, som, fotografia, argumentos, diálogos) melhorou-se substancialmente. Há alguns anos, era difícil acompanhar uma ficção portuguesa para televisão. Não se percebiam os actores, a iluminação e a fotografia eram medíocres, os argumentos eram irreais, etc.Hoje, começam as estórias a compor-se, criam-se personagens, vai-se fazendo, na prática, uma «escola» de actores de televisão, a produção ganha calo - e também os operadores estão mais exigentes, não permitindo que qualquer porcaria conspurque o nome do canal.As produtoras tiveram de ir buscar bons actores ao teatro. Após um período de adaptação, todos eles criam o calo da representação «naturalista» da televisão, como se pode constatar com Carmen Dolores na "Lenda da Garça" (desde o primeiro episódio) e Natália Vale (uns episódios mais à frente). Esta telenovela da RTP1 consegue manter um bom nível, com uma estória credível (menos nos personagens caricaturados), diferente da anterior aburda novela da RTP, que andava toda à volta de um "chip" informático desaparecido. A novela da TVI, "Todo o Tempo do Mundo", tem também aspectos positivos. A estória poderia ser inaceitável se não estivesse bem adaptada: um homem internado num hospício ganha dois milhões na lotaria e sonha em reunir uma família dividida pelo país. O nível de representação é bom e homogéneo, o que também é invulgar. Só a insistência na banda sonora, demasiado presente, revela insegurança quanto à capacidade da estória em agarrar os espectadores, pretendendo-se fazer da música, como em tantas outras séries, a bengala milagrosa que preenche lacunas emocionais da narrativa. No caso, nem era necessário.Com estas duas novelas e com as duas séries da SIC de origem espanhola ("Jornalistas" e "Médico de Família") deram-se mais uns pequenos passos para sedimentar a produção de ficção televisiva portuguesa, com tudo o que isso implica de «escola» de representação televisiva e de «linha de montagem» de programas.Todavia, mesmo todas estas horas de ficção em português deixam um sabor amarguíssimo na boca. No conjunto, a sucessão dos títulos em exibição que abrem este artigo parecem saídos duma loja de horrores. Não há uma única grande série, com uma grande estória, com um valor universal. Nenhuma surpreende pelo seu impacto estético ou social, nenhuma tem uma estória ou uma situação de origem de grande valor dramático ou cómico, nenhuma nos agarra efectivamente ao écrã. Todas elas pretendem atingir o máximo denominador comum de audiência, mas nenhuma procura fazê-lo com ousadia. Se calhar, há-de ser assim por muito tempo ainda. Só há bem poucos anos se começou a recuperar o tempo perdido.