Raul é um português de vida dupla
O assassino de Martin Luther King sempre disse que foi armadilhado por Raoul, um emigrante "latino". Mas agora a família King suspeita que Raoul é afinal Raul, um português que teve uma vida dupla e está a ser protegido pelo Governo americano.
Durante 30 anos, James Earl Ray, o assassino oficial de Martin Luther King, repetiu que era inocente e que fora armadilhado por um "latino" chamado "Raoul". Em 1995, um grupo de investigadores disse que "Raoul" se chama de facto Raul e é um emigrante português. Agora, pela primeira vez, a alegação foi feita pela família King em tribunal.William Pepper, o controverso advogado da família King que está a conduzir, em Memphis, o julgamento Coretta Scott King vs Lloyd Jowers, acusado de participar na conspiração para matar King, chamou esta semana cinco testemunhas para depôr sobre Raul e para a semana tem pelo menos mais duas.Jack Saltman, o produtor da BBC que em 1993 fez um julgamento fictício (embora com um júri, um juiz e advogados verdadeiros), testemunhou na quarta-feira, no Tribunal Cível de Memphis, que, depois de o programa ter sido transmitido nos EUA, foi contactado por uma pessoa que dizia conhecer Raul.A pessoa, Glenda Grabow, que deverá testemunhar na segunda-feira, era uma jovem prostituta que nos anos 60 trabalhou para um grupo de traficantes de armas, em Houston, Texas, que vendiam armas para a Nicarágua através de uma rede que incluia uma passagem por New Orleans. Saltman testemunhou que Grabow lhe disse que nos anos 60 e 70 conhecera um Raul que emigrara de Portugal que um dia lhe disse, em Houston, que tinha assassinado Martin Luther King. Este Raul fazia parte do grupo de traficantes e viajava de vez enquando para o Texas.Mais tarde, através de fontes que não revelou, Saltman obteve uma fotografia de um homem com o mesmo nome completo, um português que emigrou para os EUA nos anos 60. Quando foi à sua casa, falou com a filha e mostrou-lhe uma fotografia do pai dos anos 60. Saltman gravou a conversa que teve com a filha - e cuja cassete foi ouvida em tribunal - na qual a filha olha para a fotografia e diz que "o facto de ter a fotografia do meu pai não quer dizer nada; qualquer pessoa podia obter essa fotografia".Mas esta mesma fotografia, disse Saltman e outras testemunhas já o afirmaram também, foi identificada por várias pessoas, em diferentes circunstâncias e sem qualquer ligação ao caso.Na segunda-feira, April Ferguson, que foi assistente do advogado de James Ray em 1978, deverá testemunhar que um dia entrou numa sala onde Saltman preparava a produção do julgamento fictício e que olhou para uma mesa cheia de documentos e fotografias e, sem que nada lhe fosse perguntado, pegou na fotografia em questão e disse ao produtor que se lembrava de a ter visto em 1978 entre a documentação que circulava no sub-comité da Câmara dos Representantes do Congresso, que estava a reanalisar o assassinato. Terá sido totalmente espontâneo porque, nessa altura, Saltman não fazia a mínima ideia de quem era aquele homem.Esta foi também a mesma fotografia que, segundo o advogado da acusação, James Earl Ray identificou como o "Raoul" que o mandou estar em Memphis no dia 4 de Abril de 1968, o dia do assassinato de King, lhe deu ordens para comprar uma espingarda e alugar um quarto na pensão em frente ao Motel Lorraine, na varanda do qual King foi morto.No ano passado, o PÚBLICO publicou esta história e tentou contactar Raul várias vezes. Na sequência de uma visitou à sua casa, numa pequena cidade da costa leste americana, uma fonte próxima de Raul que pediu o anonimato disse ao PÚBLICO que a acusação é um "absurdo", uma "coincidência" e um "grande azar", e que a família está a ser vítima de "assédio" e acusações falsas.Mas no decorrer da conversa, a mesma fonte disse que "eles já cá vieram várias vezes, o Governo; eles têm o nosso telefone sob escuta e têm pessoas que nos avisam das coisas". "Nós temos ordens do Governo para não falar e eles já cá vieram três vezes", disse a mesma fonte.William Pepper, o advogado da família King que está a conduzir o julgamento em Memphis, considera esta informação "extraordinária" porque o "Governo americano não protege pessoas inocentes".Mas a fonte contactada pelo PÚBLICO repetiu que, em 1968, Raul "tinha acabado de chegar aos EUA, quase não falava inglês e não sabia nada de política americana". "Como é que ele ia estar a trabalhar para o Governo? Deus não dorme nem a Nossa Senhora de Fátima. Eles vão pagar por todo o sofrimento que têm causado à família."Na mesma altura, um dos advogados deste Raul português recusou dar pormenores, mas disse ao PÚBLICO que, "na melhor das hipóteses, o meu cliente é vítima de um erro de identidade e, na pior das hipóteses, é vítima de uma campanha de difamação".O advogado, Ed McDonald, de uma prestigiada firma com escritório no Rockefeller Center, em Manhattan, disse que o seu cliente "não tem absolutamente nada a ver com o assassinato de Martin Luther King".A acusação, que está a tentar provar que King não foi morto por um homem isolado (James Ray), mas sim por uma conspiração, também chamou o juiz Arthur Hanes Jr., de Birmimgham, Alabama, que foi o primeiro advogado de defesa de James Ray, em Junho de 1968. Hanes testemunhou que tentou "seguir a pista de Raul" e "descobrir informações sobre New Orleans", uma cidade onde Ray dissera ter participado em tráfico de armas ilegais com Raul. "Mas Ray proibiu-nos expressamente de investigar essa parte, proibiu-nos de ir a New Orleans. Nunca percebi porquê."Um facto que torna estas alegações ainda mais enigmáticas é que Portugal foi o primeiro país que James Earl Ray visitou depois de ter fugido a seguir ao assassinato. No Verão de 1968, Ray passou uma semana em Lisboa, num hotel no Rossio, porque, alegou, queria juntar-se aos mercenários em Angola.O júri, seis negros e seis brancos, também já ouviu a gravação de uma conversa recente de Lloyd Jowers, o réu deste julgamento, com Dexter King, o filho mais novo de King, e Andrew Young, amigo de King e ex-congressista democrata. Na conversa, Jowers, hoje com 73 anos e que em 1968 tinha um restaurante em frente ao Lorraine Motel, admite ter participado na conspiração, mas alega só ter percebido o plano mais tarde. Na conversa, Jowers fala muito sobre um Raul que identifica como sendo "mexicano ou cubano".Na cassete ouvida em tribunal, Jowers diz que foi Raul quem, antes do crime, foi ao seu restaurante buscar uma caixa com dinheiro e que foi Raul quem, no dia seguinte ao assassinato, voltou ao restaurante para buscar a arma que, diz Jowers, de facto matou Luther King.Jowers, porém, não acredita na história de Raul ser o português que vive na costa leste. "Eu nunca acreditei que o nome dele fosse mesmo Raul. Porque é que um homem ia usar o seu nome verdadeiro?"Jowers não está sozinho. Mesmo entre historiadores e investigadores que há anos defendem que houve uma conspiração para matar King não acreditam que este Raul português seja o Raul de que Ray, Glenda Grabow, Jowers e outros falam. "Não acredito na existência de um Raul", disse ao PÚBLICO uma fonte que há anos investiga o caso e que pediu o anonimato. "Penso que é uma invenção de James Earl Ray. Pode ter havido um Raul, com pronúncia estrangeira, algures na sua vida, mas a seguir Ray adoptou o nome para outras pessoas."Nota - Na terça-feira, a jornalista do PÚBLICO autora do texto acima publicado testemunhou no julgamento de Coretta Scott King "versus" Lloyd Jowers depois de - contra a sua vontade expressa repetidamente - ter sido chamada a depôr sob a intimação de um "affidavit" da acusação. O testemunho foi sobre o conteúdo da conversa, em 1998, entre a jornalista e uma pessoa próxima do "Raul" português que a acusação afirma estar envolvido na conspiração. Nenhum nome foi revelado em tribunal. Nem o apelido de Raul nem a fonte contactada.