Medicina sem fronteiras
O uso das novas tecnologias da informação invadiu a prática médica- Hoje pode encurtar as distâncias e promover até uma espécie de democracia no acesso aos cuidados de saúde. Mas um "uso perverso" da Internet pode descuidar aquilo que são as regras primárias da medicina. As organizações mundiais e os profissionais alertam para os perigos e maravilhas do progresso que já ninguém consegue travar.
A prática da medicina por meio das novas tecnologias da comunicação está hoje instituída. De tal maneira que a Associação Médica Mundial sugeriu, na sua última reunião anual, a criação de enquadramentos legais e éticos específicos. Enquanto isso, as consultas por telemedicina banalizam-se por todo o lado, inclusive em Portugal, tendo já chegado aos currículos dos cursos de medicina. E a Internet transforma-se num consultório e numa farmácia sem fronteiras, disponível 24 horas por dia.É ainda cedo no Centro de Saúde de Terras de Bouro, uma localidade isolada, às portas do Parque Natural da Peneda-Gerês. Henrique Botelho, clínico-geral, prepara-se para ligar um computador com "software" apropriado e uma câmara de vídeo, para entrar em contacto com um especialista em dermatologia do Hospital de São Marcos, em Braga. É o hospital mais próximo mas, medindo todas as curvas e contra-curvas de estrada secundária que o separam de Terras de Bouro, não fica tão próximo como isso. A telemedicina foi a solução apropriada que Henrique Botelho encontrou para encurtar a distância e poupar quilómetros de caminho aos utentes de Terras de Bouro. O único lucro que daí tira é o melhor serviço que presta aos seus pacientes."Trata-se de uma consulta de dermatologia, à distância. Aqui no centro de saúde estou eu, o doente e o médico de família que o acompanha. No Hospital de São Marcos está o especialista e comunicamos todos em video-conferência. A reacção dos utentes é sempre de deslumbramento. Repare que estamos num meio rural ", explica. A lesão dermatológica em causa é filmada com uma câmara de vídeo digital e a imagem é enviada em alta definição, com a possibilidade de ser ampliada, para que o dermatologista possa fazer melhor o diagnóstico, sempre de acordo com o diálogo travado com o médico de família. "A dermatologia é uma especialidade que se presta à telemedicina, pois as lesões são estáticas. Só se houver suspeita de uma reacção alérgica é que o paciente terá de se deslocar para fazer os testes necessários", acrescenta Henrique Botelho, frisando que a comunicação entre o médico de família, que acompanha o doente, e o especialista do outro lado da rede é indispensável: "A telemedicina é um meio complementar". Uma opinião partilhada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Germano de Sousa, que afirma que a telemedicina não poderá nunca substituir a relação entre médico e doente: "É possível hoje que um colega num sítio recôndito de África troque ideias sobre um caso com um colega no melhor hospital de Londres ou de Lisboa. Mas a observação do terapeuta é essencial".Mas, num uso considerado perverso por muitos especialistas, a Internet tem servido também para vender cuidados médicos "on-line" e até receitar e vender medicamentos sem que o paciente seja devidamente observado. No princípio deste mês, em Nova Iorque, numa convenção sobre cuidados de saúde "on-line", foram apresentados milhares de sítios na Web onde é possível consultar profissionais de saúde sobre os mais variados aspectos (ver caixa). As críticas são mais cerradas quando se trata de prescrição médica via Internet. "Praticar medicina sem ter a informação completa sobre o doente implica riscos muito graves", disse na altura Rick Abbott, do Centro Médico Beth Israel, em Nova Iorque."Se as coisas correrem mal, de quem é a culpa? É do doente que consulta aquele serviço 'on-line'? É do médico dele? É do médico que prescreve à distância e que nada sabe sobre o doente? Esta cibermedicina é errada e há pessoas a ganhar dinheiro com esta prática", afirma Mário Gastão Lopes, cardiologista e professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde lecciona uma disciplina opcional do primeiro ano sobre "As novas tecnologias da informação na promoção da saúde e educação na doença". O objectivo, explicou, é "sensibilizar os alunos para as novas tecnologias" e para certas vantagens da telemedicina.No sentido de prever legal e eticamente alguns procedimentos menos correctos da telemedicina, a Associação Médica Mundial frisou bem, na sua última reunião, que decorreu em Israel em Outubro, que era urgente definir um quadro legal e ético para o procedimento clínico em telemedicina. "O uso da telemedicina tem potenciais vantagens, permitindo um acesso facilitado aos especialistas e acelerando o processo de diagnóstico médico pelo uso da imagem. Mas, visto que não estamos perante os princípios tradicionais que governam a relação médico-paciente, é necessário definir novas linhas mestras no que toca à ética", pode ler-se num comunicado da organização. Em Portugal, o Ministério da Saúde do anterior executivo mostrou publicamente vontade, num debate sobre telemedicina realizado no Fórum Picoas em 1998, de organizar uma comissão ministerial para a telemedicina. A Ordem dos Médicos escolheu o seu representante, que seria Mário Gastão Lopes. Mas este nunca foi chamado, nem sabe dizer quem do ministério formaria a comissão. No entanto, Mário Lopes não desarmou e tem encontro marcado com o bastonário da Ordem, Germano de Sousa, para definir os pontos que a classe assume como essenciais a esclarecer. Mas o gabinete de Manuela Arcanjo foi contactado pelo PÚBLICO e ninguém parece saber do paradeiro deste "dossier". Pedro Coelho dos Santos, actual assessor de imprensa foi até claro, embora demorado, na resposta: "A comissão não existe".No anfiteatro de anatomia patológica da Faculdade de Medicina de Lisboa, no piso cinco, onde decorre a aula sobre novas tecnologias da informação na medicina, o cenário é o mesmo onde Mário Gastão Lopes se sentou como aluno há mais de trinta anos: as cadeiras altas de madeira e a inclinação abrupta da escadaria, o tecto alto e o estrado que eleva o mestre. Na fila da frente, João Balinha, 19 anos, um dos cinco alunos que assiste àquela disciplina opcional, de uma turma de duzentos, pergunta: "O que acha da questão das consultas feitas na Internet?" "Em Portugal não são permitidas. Mas nada me impede de consultar um médico nos Estados Unidos pela Internet." E, numa rede global sem fronteiras, dificilmente as regras existentes travarão a evolução constante. Simplesmente porque não foram feitas para ela.