A lenta agonia da ilha de Moçambique
"As pessoas que chegam cá perguntam sempre o mesmo: é isto a Ilha de Moçambique? O que é que aconteceu aos milhões que vieram para cá ?" O velho shehe Abdulrahman Amur, quase cego pelo glaucoma, olha longe para o límpido mar Índico, suspira profundamente e encolhe os ombros. De facto, quem vê a Ilha de Moçambique, por mais crédulo, não acredita, e por mais ingénuo, desconfia.A Ilha está virtualmente arruinada e não é mais que uma labiríntica sucessão de edifícios cansados, ruínas imponentes, passeios afundados e estradas esventradas."Então" - perguntam os visitantes boquiabertos - "a Ilha não é Património Mundial há quase oito anos? E não veio cá a UNESCO com 50 projectos de reabilitação, mais os espanhóis que iam reconstruir a ponte, e os holandeses e, ainda há dias, o embaixador dos Estados Unidos? Ah, e não restauraram uma capela?"Não, isso é história dos jornais. A UNESCO ainda não encontrou dinheiro para projectos, a ponte lá está, cai não cai, os holandeses ficaram em Nampula e o embaixador veio mas já foi. E a capela parece que foi restaurada, mas o cimento por cima da pedra numa ilha com o teor de salinidade que Moçambique tem não se segura e já caíu.A "Ilha do Próspero" das literaturas e do imaginário colectivo de portugueses e moçambicanos, é um areal coberto de escombros onde as pessoas respiram resignação e vivem da espera. Vê-se nas palmas das mãos húmidas do Shehe que tem sido uma longa e agonizante espera, que exigiu dos napareias uma sábia paciência, quase cepticismo.Há sempre um indisfarçável sorriso no canto do lábio e uma nota levemente fora de tom quando se fala no que os jornais dizem, lá fora, sobre as perspectivas de desenvolvimento em Moçambique e a importância que a Ilha tem merecido da comunidade internacional enquanto Património Mundial."Vai ver, quando voltar a Portugal vão-lhe perguntar se as criancinhas aqui já estão mais gordinhas...". Não foram propriamente essas palavras que as pessoas utilizaram, mas o Shehe tinha razão. De facto, em Lisboa muitas pessoas acreditam genuinamente que a Ilha já é uma próspera estância turística em reabilitação e que o Mundo vai em venerada peregrinação ver o mais comovente testemunho da lendária coexistência multi-étnica e da famigerada co-habitação religiosa que nós, os modernos portugueses, teimamos em acrescentar ao grande epitáfio do longínquo Império do Oriente.Abdulrahman Amur sabe que não é por falta de boa vontade que a sua Ilha continua virtualmente destruída e o desenvolvimento económico e social passa ao largo da Ilha.Num país tão profundamente traumatizado por uma independência rápida e por uma guerra prolongada, tudo leva tempo, mais tempo que dinheiro. E nem sempre existem as pessoas capazes de fazer as coisas que se querem fazer. Depois, as distâncias são tão grandes e as formas de chegar de um ponto a outro tão dolorosas que frequentemente se esvai o ânimo e se esfria essa comovente vontade de salvar o Mundo de um dia para o outro que leva tanta gente a Moçambique.E a Ilha é apenas um exemplo do que se passa em Moçambique. O país da Marrabenta é hoje em dia um dos maiores recipientes da ajuda internacional para o desenvolvimento. Mais de metade do seu orçamento (54%) é financiado pelo estrangeiro e calcula-se que mais de 1,08 biliões de dólares tenham entrado naquele país só entre 1994 e 1996 através das linhas de ajuda criadas pelo Banco Mundial, Governo alemão, União Europeia, Estados Unidos, Suécia e Noruega, só para citar os doadores mais generosos.Em Moçambique operam presentemente 20 agências governamentais de diferentes países do Mundo, meia dúzia das mais importantes instituições multi-laterais no planeta, todas as agências das Nações Unidas e cerca de 150 organizações não governamentais estrangeiros. O directório moçambicano de organizações nacionais e internacionais envolvidas nesta massiva operação de ajuda humanitária ultrapassa os 480 nomes, muitos dos quais estão na vanguarda do que de melhor se pode fazer em qualquer parte do Mundo para ajudar a desenvolver a economia, a educação, a saúde e a cultura.Dispõe, além disso, de orçamentos que fariam corar os departamentos de cooperação bilateral de muitos países, incluíndo o português.Toda a gente quer salvar Moçambique. E quando muita gente quer a mesma coisa, geralmente criam-se mal-entendidos. Só assim se compreende que, sete anos volvidos sobre o acordo de paz de Roma e das primeiras promessas de que o Mundo ajudaria Moçambique, o país ainda esteja classificado como o segundo estado mais pobre do Mundo em termos de rendimento per capita e o terceiro mais pobres de acordo com o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).Segundo o Banco Mundial, o Rendimento Per Capita de cada moçambicano não excede os 90 dólares, isto é, pouco mais do que o preço de um jogo da Sega ou uma dormida numa pousada alentejana na época baixa. A esperança média de vida à nascença de um moçambicano é de 46,3 anos, isto é, menos trinta anos de vida que a de um Português. Apesar dos muitos progressos de que Moçambique se pode orgulhar, só uma em cada quatro crianças moçambicanas vão à escola e apenas duas em cada 10 mulheres moçambicanas sabe ler e escrever.Nas áreas rurais, a vida é bem pior em muitos aspectos. Cerca de duas em cada três pessoas que vivem no campo são classificadas como vivendo abaixo do limiar da pobreza. Trinta por cento destas pessoas tem de andar mais de um quilómetro só para encontrar água para beber e por mais que trabalhem, estas famílias rurais não conseguem armazenar comida que chegue para o ano inteiro. Há em média 3.7 meses em cada ano durante os quais não há comida em casa e a fome é eminente. Como é possível coexistirem num mesmo país tantas organizações humanitárias e tanta fome, tanta bondade genuína e tanto desespero ? Segundo o Governo, um dos maiores problemas de Moçambique reside na "dificuldade de coordenar a ajuda internacional". Um pouco o mesmo que me disseram as cerca de 49 organizações não-governamentais que conheci em Nampula numa reunião que acabou literalmente às escuras por falta de luz."Não queremos mais dinheiro, queremos parceiros". Eles sabem que a ajuda humanitária, tal como todas as andorinhas do Mundo, um dia sairá em revoada. Haverá outros Acordos de Roma e outros Moçambiques, onde a paz será exemplar, o desenvolvimento ainda mais inspirador e onde o contributo dos países mais ricos, sobretudo do Ocidente, será coisa mais fácil de emoldurar. E o que ficará então? As pessoas, isto é, o capital humano, são a maior riqueza de um país e Moçambique precisa de enriquecer rapidamente. Felizmente, algumas iniciativas estão a emergir (como a que a PACT americana está a desenvolver no Norte de Moçambique) no sentido de aumentar a capacidade e auto-confiança dos agentes locais mas há, contudo, um receio generalizado de que a ajuda internacional tenha despertado tarde demais para o problema do "dia seguinte". Quase todas as organizações internacionais que contactei parecem ter decidido que Moçambique não precisará de tanta ajuda estrangeira e muitas delas irão abandonar fisicamente o país em 2001.O tempo está a passar rapidamente para este país que alguém um dia descreveu como uma das maiores esperanças da Humanidade como exemplo de paz e progresso. O ouro prometido está a transformar-se em areia fina que foge entre os dedos e os moçambicanos sabem-no...*Director da Fundação Aga Khan PortugalE-mail Imtiaz.Juma @fakp.pt