Ascensão e queda das conserveiras de Matosinhos
Após ter constituído durante décadas uma das imagens de marca de Matosinhos, a indústria conserveira não passa hoje de uma saudade, corporizada em vários edifícios arruinados na zona sul do concelho. Só uma fábrica (a Pinhais) persiste actualmente na produção de conservas, e mesmo essas são totalmente absorvidas pela exportação. Cem anos volvidos sobre a instalação em Matosinhos da primeira conserveira, tem hoje início uma jornada evocativa.
Foi há precisamente um século que começou a laborar em Matosinhos a primeira unidade industrial do concelho: a Real Fábrica de Conservas de Matosinhos, impulsionada pela firma Lopes, Coelho & Dias, e que viria a inaugurar uma era de prosperidade industrial marcada pelo predomínio do sector conserveiro. Ainda em 1899, foram também inaugurados, alguns meses mais tarde, os armazéns da Real Vinícola (fundados pela família Menéres), complexo industrial com cerca de 11 mil metros quadrados que nasceu no espaço ocupado pelo antigo hipódromo.Cem anos volvidos, a actividade económica que chegou a ser fervilhante em ambos os casos extinguiu-se mas os edifícios acabaram por conhecer destinos diversos. As primitivas instalações da conserveira centenária, sitas na Rua de Brito Capelo, não foram reconhecidas como de especial interesse arquitectónico, pelo que o edifício acabou por ser demolido há alguns meses; em seu lugar irá nascer uma urbanização destinada ao segmento alto do mercado, entre as muitas que passarão a marcar a fisionomia da zona sul de Matosinhos. O imóvel da Real Vinícola, pelo contrário, será conservado na sua traça essencial, passando a constituir a base para a instalação do futuro Centro de Ciências do Mar, um dos equipamentos concebidos como âncora de revitalização de uma zona que se foi degradando nas últimas décadas. Estas e outras evocações irão decerto passar ao longo da 2ª edição das Jornadas de História e Património Local, promovidas pela Câmara para assinalar os cem anos da indústria de Matosinhos e que hoje terão início no Centro Municipal Joaquim Neves dos Santos. As vicissitudes que marcaram a ascensão e queda do sector conserveiro serão abordadas por especialistas como Jorge Alves (da Faculdade de Letras do Porto) e Maria do Carmo Serén (do Centro Português de Fotografia). Na sequência da instalação pioneira de Lopes, Coelho & Dias, chegaram a fixar amarras em Matosinhos Sul várias dezenas de unidades do género, que atingiram o seu auge económico por alturas da Segunda Guerra Mundial. Mais precisamente em 1945, ano em que foram registadas 167 firmas daquele ramo industrial. A proximidade do porto de Leixões e a dinamização do sector exportador nas primeiras décadas do século facilitaram o crescimento das conserveiras. No entanto, após o desaparecimento da conjuntura de privilégio gerada pela guerra de 39/45 na qual Portugal foi neutral, as empresas encetaram um doloroso plano inclinado, que viria a acentuar-se decisivamente nos primeiros anos da década de 70, período em que desapareceram nada menos do que treze unidades.Segundo José Manuel Cordeiro, especialista em arqueologia industrial (foi ele, aliás, que organizou há dez anos uma exposição sobre esta temática na Câmara de Matosinhos), a descapitalização das empresas foi o principal factor que esteve na origem do seu declínio. O condicionamento industrial imposto pelo Estado Novo dificultava o aperfeiçoamento tecnológico das fábricas e a concorrência oferecida pelos países do Norte de África ameaçava a supremacia mercantil dos operadores portugueses. A indústria, de feição sazonal, estava igualmente dependente do afluxo de pescado, cujos ciclos tinham altos e baixos pronunciados que nunca foram previstos com exactidão. Por outro lado, muitos dos capitães-de-indústria, em vez de reinvestirem na modernização das suas unidades, canalizavam o dinheiro para outras áreas económicas mais rendosas, como a construção civil. O novo regime instaurado em 1974 e a consequente valorização dos direitos laborais deram a machadada final num sector que vivia muito dos salários baixos e de horários de trabalho arbitrários. Esta decadência paulatina acabou assim por converter aquele que era um dos símbolos industriais e culturais de Matosinhos (a actividade conserveira) numa relíquia condenada pela história. Presentemente, sobrevive no concelho apenas uma unidade que se dedica ao fabrico de conservas. Trata-se da Fábrica Pinhais, situada na Avenida Menéres e cuja fundação remonta a 1920. Na produção, são aqui aplicados métodos tradicionais ao arrepio de algumas das fases mecanizadas que já se vinham tornando habituais no sector. Mas, salvo uma ou outra excepção, as latas de conserva da Pinhais não estão disponíveis em Portugal. É que a produção da fábrica é integralmente canalizada para o mercado externo, mais precisamente para os Estados Unidos.