Milla, a super Joana D'Arc
Colocou-se no primeiro lugar das bilheteiras francesas nos primeiros dias da estreia, na semana passada, e é o filme mais consensual de um cineasta que provoca algumas irritações na crítica francesa: "Jeanne D'Arc", de Luc Besson. Serve-o o corpo andrógino e poderoso de Milla Jovovich.
Ir direito à questão: sem Milla Jovovich, o "Jeanne d'Arc" de Luc Besson suscitaria o mesmo interesse? Milla, a actriz-manequim-cantora-compositora, de nacionalidade "russo-jugoslava-ucraniana-americana", que começou o filme como mulher de Luc Besson e o acabou como sua "ex" - Milla Jovovich, a Leello do "Quinto Elemento"... iiiisso mesmo, Milla Jovovich. 24 anos, e uma vida profissional longa, já dois casamentos e dois divórcios e, no entanto, 500 e tal anos depois, tão próxima dos 19 anos da Donzela de Orleães, do seu desequilíbrio emocional como da sua valentia guerreira, sabedora das suas lágrimas tenras como da sua ferocidade cruel. O mistério desta história de uma camponesa da França medieval, cujo destino alimentou o imaginário francês desde as premissas do nascimento de uma nação, provém de tais contradições.A verdadeira Joana d'Arc guerreou em nome de Deus para dar uma coroa a um rei, e acabou queimada viva numa fogueira inglesa. Morreu herética, condenada pelos doutores da Igreja e abandonada por aqueles a quem servira de joguete político, e foi santificada séculos depois pelo Vaticano, enquanto conservadores e reformistas a "reclamam" ao mesmo tempo como "símbolo".Ora, Jovovich vai viver tais contradições na tela. A actriz voga de um misticismo exacerbado às feridas íntimas de uma consciência atormentada e, intuitiva, não esconde o prazer, ou a vaidade, que um carisma fora do comum terá dado a Joana d'Arc. "Milla d'Arc", resume o crítico do diário "Libération". "Jeanne Besson", proclama, ambígua, a revista de cinema "Première".Significa isto que a sua interpretação faz com se fale doravante da "Jeanne" de Besson - como se fala da "Jeanne" de Flemming, da "Jeanne" de Rivette, da "Jeanne" de Preminger? Os cinéfilos procuram, febris, a melhor definição para o último dos rostos de uma mulher lendária sem rosto. E já que a História não guardou nenhum retrato, o cinema deu-lhe a expressão mística enlouquecida de Renée Falconetti (Dreyer, 1928), o rosto de santa de Jean Seberg (Preminger, 1957), a tez diáfana de Ingrid Bergman (Rossellini, 1954) ou o olhar frágil de Sandrine Bonnaire (Rivette, 1993).Milla Jovovich dá-lhe um corpo. Um corpo andrógino e poderoso, uma força física selvagem, a nuca calva, um vozeirão de ódio que ora galvaniza as tropas, ora se esfrangalha em lágrimas. São estes, de resto, os esparsos traços físicos da Donzela que atravessaram a história, juntamente com o comentário de um dos seus homens de armas, o Conde d'Aulesson, que diz ter-lhe visto um dia "os seios - que ela tem mui belos".Mas então, com Milla Jovovich, o "Jeanne d'Arc" de Besson mais não seria do que uma espécie de "Nikita" medieval? A actriz é de facto indissociável do papel que desempenha, e a heroína assemelha-se às heroínas de Besson - as super-mulheres de filmes algo adolescentes como "Subway", "Le Grand Bleu" ou o "Quinto Elemento".Há, porém, uma qualidade intrínseca na "Jeanne" de Besson que leva a imprensa inimiga do realizador - "Libération", "Les Cahiers du Cinéma" - a reconhecer que ele "assina o seu melhor filme": Luc Besson procura nos mecanismos psíquicos da heroína, em conjunção com as intrigas políticas da época, a explicação do mistério que envolve a lenda.Na primeira parte, recorre a modestos efeitos digitais para "mostrar" as visões da adolescente e as vozes celestes que ela diz ouvir. Estas cenas de grande beleza contrastam com o traumatismo da sua infância: a pequena camponesa assiste, impotente, à violação e ao assassinato da irmã pela soldadesca inglesa que pilhava as aldeias de França. O traumatismo será multiplicado por um forte sentimento de culpa, pois Joana escapa à morte porque a irmã se sacrifica por ela.Luc Besson filma assim uma Joana d'Arc exaltada, não a santa que os adornos políticos moldaram. Voltaire, que nunca acreditou nas vozes celestes que teriam confiado a uma camponesa analfabeta a missão de "expulsar os ingleses fora de França", consagrou uma epopeia burlesca a Jeanne. É verdade que em plena Guerra dos Cem Anos que opôs franceses e ingleses, mas sem que houvesse ainda nas duas margens da Mancha uma noção afirmada de "nação" (Jeanne nasceu em 1412, em Domrémy, e morreu em Rouen, no ano de 1431), havia, antes de mais, uma guerra civil entre o "partido" "armagnac" conservador, que apoiava o Delfim (o futuro Carlos VII), e o "partido" "bourguignon" reformista, que se aliaria aos ingleses depois de uma traição do Delfim. Em nome das suas "vozes celestes", Jeanne interferiu na guerra a favor do Delfim. Vários historiadores levantam também a hipótese de ter sido aproveitada (e "treinada") por Yolande de Aragão, a intrigante sogra do Delfim, para influir no curso da História. Besson confia o papel a Faye Dunaway, espantosa a insinuar a tese de uma intriga política.O realizador acompanha assim uma leitura mais rigorosa da história de Joana d'Arc. Mas o vigor das batalhas é a pura essência de Besson. Dois compinchas, os realizadores Mathieu Kassovitz ("O Ódio") e Jan Kounen ("Doberman"), filmaram muitas dessas cenas de câmara ao ombro. A violência foi tal, que um "stuntman" morreu num acidente. Mas a qualidade do filme reside noutros traços da Donzela que Besson consegue mostrar. A revista "Première" frisa assim: "Luc o solitário, transforma Joana-a-Católica numa espécie de pioneira do protestantismo, que abana as aristocracias políticas e religiosas ao chamá-las às ordens que supostamente devem servir". Na última parte do filme, Jeanne, prisioneira dos ingleses e julgada pela Igreja de França, abandonada pelo rei Carlos VII desde a entronização em Reims, tem um "diálogo" com a sua "consciência" (Dustin Hoffman, magistral) que oferece uma interpretação, acessível a todos, das "vozes celestes" da guerreira. No século XIX, a França precisava de símbolos patrióticos. Jeanne foi assim "desenterrada" para simbolizar a monarquia legítima restabelecida na Restauração. Em reacção, o historiador (de esquerda) Michelet transformou-a numa mulher do povo que defendeu a honra da pátria traída pelas elites religiosas e aristocráticas. Nos anos 20, o Vaticano beatificou-a, e a Igreja recuperou uma mulher que condenara por heresia cinco séculos antes.Porque razão quis Besson agarrar num assunto tão batido? Em várias entrevistas, diz que Hollywood preparava um projecto sobre Joana d'Arc, e ele não queria deixar em mãos americanas um assunto europeu.