A pornografia está à nossa volta
Não podia ser mais contundente a decisão da juíza federal que obriga o "mayor" de Nova Iorque a continuar a financiar o museu que acolhia uma exposição que Giuliani considerou "doentia". A bosta de elefante e a pornografia são ingredientes possíveis para um retrato da Virgem Maria. Trata-se apenas da forma de expressão de um artista e isso é defendido pela Primeira Emenda.
Enquanto as bichas à porta do Brooklyn Museum of Art, em Nova Iorque, parecem não diminuir, o "mayor" da cidade sofreu na segunda-feira uma pesada derrota ao receber uma ordem do tribunal federal de Brooklyn para repor os fundos cortados ao museu depois da inauguração da exposição "Sensation", há um mês. Dedicada à jovem arte britânica, com 90 obras de 40 artistas da famosa colecção Saatchi, a mostra foi considerada pelo republicano Rudolph Giuliani "ofensiva" e "doentia", tendo a cidade decidido cortar os 7,2 milhões de dólares (cerca de 1,4 milhões de contos) com que anualmente contribui para o orçamento de 23 milhões da instituição. Numa decisão fundamentada em 38 páginas, a juíza Nina Gershon disse que o "mayor" e a cidade tinham violado a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, acrescentando que não podiam infligir qualquer "castigo, retaliação, discriminação, ou sanção" por causa da exposição. No centro da polémica está uma obra do pintor Chris Ofili, intitulada "The Holy Virgin Mary", que empresta uma fisionomia negra à Virgem Maria e a faz rodear de colagens pornográficas (rabos, na maioria) e da imagem de marca do artista - bosta de elefante. Ofili, cujas raízes africanas o fizeram viajar até ao Zimbabué com uma bolsa do British Council, começou a utilizar fezes de elefante nas suas obras depois dessa estadia, "numa tentativa de ligar fisicamente [as pinturas] a uma cultura e a uma paisagem cultural", lê-se no catálogo da exposição. O artista, representado na "Sensation" por cinco obras e que tem neste momento a sua segunda exposição em Nova Iorque ("Afrobiotics", na Gavin Brown's Enterprise), foi o vencedor do Prémio Turner em 1998, o mais prestigiado galardão britânico no âmbito das artes plásticas. No Museu de Brooklyn, a polémica pintura está protegida por um vidro, colocado a cerca de dois metros de distância, e dois polícias guardam constantemente a obra. A mostra da colecção do publicitário inglês Charles Saatchi - exibida pela primeira em 1997 na Royal Academy of Arts, em Londres - tem sido um enorme sucesso, levando muitos nova-iorquinos de Manhattan a atravessar a ponte de Brooklyn num itinerário pouco habitual. As filas à porta obrigaram a instituição a desdobrar-se em bilheteiras e, aparentemente, as investidas de Giuliani contra a exposição funcionaram como a melhor das publicidades. "Não há questão constitucional mais grave do que a tentativa por parte de responsáveis governamentais de censurar formas de expressão e de ameaçar com uma punição a vitalidade de uma instituição cultural importante, que não se quis submeter às exigências governamentais de ortodoxia", escreve a juíza. Giuliani, que também fez campanha para o museu abandonar o edifício municipal onde está instalado há um século e destituir o conselho de administração, disse que a decisão era "o reflexo automático de certos juízes" e acrescentou que a cidade ia recorrer. Para além do apoio da direita religiosa, que na inauguração distribuiu sacos para vomitar e organizou um vigília constante à porta da "Sensation", Giuliani tem estado um pouco isolado nesta cruzada contra a arte britânica. Depois da decisão de segunda-feira ser conhecida, os responsáveis do museu saudaram de imediato a decisão e organizaram uma conferência de imprensa. "Isto é uma vitória dos cidadãos de Nova Iorque e da liberdade de expressão em todo o país", afirmou Robert S. Rubin, presidente do conselho de administração, citado pelo jornal "New York Times". "Nós acreditamos que as pessoas de Nova Iorque e do país são inteligentes, têm um espírito livre e, como está garantido na Primeira Emenda, capazes de decidir por eles próprios que exposições ver, que livros ler e que opiniões expressar. Não podemos permitir que a censura ou políticos minem os nossos direitos mais importantes como cidadãos dos Estados Unidos", acrescentou. A decisão da juíza Nina Gershon é a apenas uma sentença temporária contra a cidade, devendo agora o museu procurar que se torne permanente. Mas, segundo o jornal, era claro que ambos os lados viam a decisão como o primeiro "round" numa questão que atravessa a cidade de lado a lado "com as suas implicações para as instituições culturais, a Primeira Emenda e o futuro político de um 'mayor' que está a considerar fazer campanha para o Senado". A sua opositora será Hillary Rodham Clinton, que já disse que considera a exposição "objectável", mas que discorda do corte dos fundos. Ofili, numa exposição que tem crianças a serem sodomizadas umas pelas outras (Jake & Dinos Chapman) e uma pintura de uma "serial killer" feita com as supostas mãos das suas vítimas infantis (a obra "Myra", de Marcus Harvey, causou escândalo na Royal Academy) acabou por ser o centro desta polémica, apesar do artista se considerar católico e de ter afirmado que o seu trabalho é a expressão das suas interrogações religiosas. Ou, como escreveu a crítica do "New York Times", há uma semana, sobre esta belíssima madona que também é composta através do recurso a prosaicos "pins" utilizados para marcar mapas, sem mencionar a estafada bosta de elefante: "Chris Ofili não inventou a pornografia; está tudo à nossa volta. Ele usa-a simplesmente de uma forma que é bonita e com duplo sentido. Por que razão é que uma Madona contemporânea, mesmo uma meia louca ou exótica, não poderá estar rodeada completamente por imagens contemporâneas do pecado?" A juíza escreveu, aliás, na sua decisão que entre a colecção do museu de 1,5 milhões de obras de arte há muitos retratos reverenciais da Virgem: "Nenhum observador objectivo pode concluir que a exposição de um trabalho de um artista individual pelo museu, que é visto por alguns como sacrílego, constitui um aval de visões anti-religiosas pela cidade ou pelo mayor, ou, já que se fala nisso, pelo museu, não mais do que mostrar trabalhos religiosamente reverenciais constitui um aval da religião."