Bem-vindo ao mundo das tríades
O processo judicial que aponta o chinês Pang Nga Koi como líder da mais poderosa tríade a operar em Macau, a 14 Quilates, é um verdadeiro convite a melhor conhecer o submundo destas associações secretas chinesas. Mas também as contradições da acção das autoridades policiais e da administração portuguesa em Macau. O PÚBLICO consultou documentos secretos que estão no processo de Pang Nga Koi e descobriu a história de como os quatro principais chefes das tríades de Macau se uniram em 1995 para fazer frente aos grupos rivais de Hong Kong. E apurou que avisaram as autoridades da guerra que se anunciava. Mesmo assim, o sangue manchou o asfalto de Macau de há três anos a esta parte, com o território a entrar numa espiral de violência que só a China pode controlar. Para trás ficam quase 100 mortos e a amargura de ter deixado derrapar os últimos anos da transição.
Os chefes das principais quatro seitas de Macau reuniram-se em meados de 1995 com elementos das Forças de Segurança macaenses, nas instalações desta polícia, e comunicaram a sua estratégia de organização para fazer face à previsível entrada das tríades de Hong Kong no território depois da transição para a soberania da República Popular da China. Assumiram-se como chefes de seita e anunciaram de viva voz, sem reacção alguma das forças policiais, a criação de uma nova seita, a Quatro Unidos, bem como a guerra que aí vinha e que deu, em números redondos, 26 homicídios em 1996, 30 mortos em 1997 e mais de 30 durante o ano em curso. A descrição da reunião, locais, presenças e objectivos, o controlo das salas de jogo "subconcessionadas" às seitas nos casinos de Macau constam do relatório 22/95 da Repartição de Informações das Forças de Segurança de Macau. O PÚBLICO teve acesso a esse documento, que constitui um dos principais elementos da acusação no processo, que vai entrar numa fase decisiva e que conduziu ao julgamento de Pang Nga Koi, apontado como líder da poderosa tríade 14 K, ou 14 Quilates.Até aqui, a reunião dos quatro chefes e o posterior encontro com as autoridades portugueses não tinha passado da categoria dos rumores. Mas o documento está no processo de Pang Nga Koi e no julgamento têm aparecido testemunhas, sobretudo agentes das Forças de Segurança da PSP de Macau ou da Polícia Judiciária, a fazer referências ao relatório que, por estar classificado como "secreto", não está disponível à leitura pública (ver caixa).A verdade é que, apesar de o anúncio da constituição de "um cartel do crime organizado em Macau" representar um dos "maiores desafios lançados à autoridade da administração portuguesa", como reconhece o despacho escrito no relatório, as Forças de Segurança não conseguiram evitar a onda de violência que se seguiu. Só quatro anos depois ocorre a prisão de Pang Nga Koi, numa fase em que o estrelato que lhe era dado por entrevistas à "Newsweek" e à "Time" e por um filme que fez sobre ele próprio tornavam insustentável a pressão internacional sobre a administração portuguesa. Pang Nga Koi deu-se mesmo ao luxo de filmar cenas de pancadaria com 300 a 400 homens em Macau e a cortar o trânsito numa das pontes, o que não seria possível sem o conhecimento das autoridades.A tão generosa colaboração dos líderes das tríades deixou um rasto de interrogações aos responsáveis das Forças de Segurança. Porquê esta colaboração? Porquê a quebra do secretismo que sempre envolveu o submundo das seitas e porquê a constituição dos Quatro Unidos naquele momento?Os especialistas da PSP apontam vários factores, que vão desde a rivalidade histórica entre a 14 Quilates e os grupos de Hong Kong à tentativa de assassinar Pang Nga Koi, mas há um que se destaca pela verdadeira confissão de incapacidade que representa: "A abertura das suas declarações e a quebra do secretismo poderá indiciar, senão mesmo comprovar por parte dos grupos organizados no Território, ignorância, desautorização e desrespeito por todas as instituições judiciais e policiais do território, face à necessidade de defesa dos seus interesses."Na perspectiva do então responsável da Repartição de Informações, major José Augusto Carvalho Lourenço, que é quem assina o relatório, "é deveras preocupante a imagem e a ausência da capacidade de força e controlo que as instituições atrás referidas fazem chegar a estes grupos". Observando que, "no momento em que são confrontados com a defesa dos seus interesses, eles não têm qualquer relutância em pôr em cheque as autoridades do Território, Carvalho Lourenço conclui: "Não se vislumbram, parece-nos, outras razões de peso para que o à-vontade demonstrado nas declarações prestadas e a quebra do secretismo, tido como pedra base nestas organizações, se tenham verificado."A partir da referida reunião de chefes das tríades - Wan Kuok Koi, nome de guerra "Pang Nga Koi", Lai Tong Sang, também conhecido por "Soi Fong Lai", Tam Ian Wut, que responde igualmente por "Sei Ngan Ngau" e Kong Kuok Leong, que tem a alcunha de "Ah Leong"-, começou uma guerra sem quartel entre os grupos rivais de Macau e Hong Kong. E, em paralelo, eclodiam também disputas entre facções mais radicais das associações que operam em Macau, sobretudo a 14 Quilates e a Gasosa ou Soi Fong.Como resultado verificaram-se 26 homicídios só no ano de 1996, dezenas de acções violentas e mortos nos dois anos e meio seguintes. Houve ataques à bomba a instalações das Forças de Segurança e aos casinos concessionados à Sociedade de Turismo e Diversão de Macau (STDM), liderada pelo empresário Stanley Ho, atentados contra pessoas, entre as quais o oficial do Exército português tenente-coronel Manuel António Apolinário, também subdirector da Inspecção do Contrato de Jogos e que antes, enquanto antecessor do major José Augusto Carvalho Lourenço na chefia da Repartição de Informações, tentara dar um impulso fundamental na luta contra as tríades.Na reunião entre os chefes das quatro tríades de Macau estavam em cima da mesa duas questões: reforçar a organização das quatro seitas face a uma previsível ofensiva das tríades de Hong Kong no território sob administração portuguesa depois da transição da antiga colónia britânica para a soberania da China e debater a divisão dos lucros dos casinos. A reunião dos quatro chefes chegou a ser noticiada por dois jornais, o "Ou Mun", de língua chinesa, e o diário português "Macau Hoje". Foi a partir daí que os operacionais da área de informações da PSP e da PJ de Macau se puseram em campo.A 6 de Julho de 1995, a PSP produziu a primeira informação: "O Pang Nga Koi, da 14 K, o Ah Lai, da Soi Fong, o Sei Ngan Ngau, do Grande Círculo e o Ah Leong, da Seng I, tiveram uma reunião no restaurante Diamond, do Hotel Lisboa, em que decidiram formar uma superassociação para fazer frente aos elementos de Hong Kong que em 1997 virão para Macau, e que passariam a exigir às salas VIP dos Casinos e aos grupos 'junkets' [ver texto com perguntas e respostas ao lado] dez por cento do movimento mensal dos seus negócios."Um dia depois desta informação ter sido lida pela hierarquia da PSP, os chefes das tríades foram consecutivamente convidados a comparecer nas instalações do Comando da PSP. E, para espanto de todos, apareceram mesmo. Foram registadas as declarações dos quatro homens que "se assumiram como chefes das respectivas associações", como assinala a Repartição de Informações das Forças de Segurança, para além de confirmarem que tinham concordado em criar uma nova associação chamada "Quatro Unidos", uma espécie de federação das tríades de Macau."Todos foram unânimes em afirmar que o objectivo principal que os levou a reunir-se foi conseguirem juntar as quatro seitas numa associação conjunta que permitisse: tornar as seitas mais unidas, terminando as rixas e conflitos entre os seus elementos, casos que passariam a ser resolvidos em 'reunião dos chefes'; criar uma superorganização com poder e força para fazer frente às seitas de Hong Kong", afirma o relatório produzido pelo departamento de informações.As tríades macaenses conheciam melhor que ninguém o maior poder dos grupos de Hong Kong, quer em homens quer em meios financeiros, e, por outro lado, a situação em Macau vinha a piorar de ano para ano. A crise económica no território e a consequente abertura à concessão de facilidades a investidores estrangeiros para que fixassem residência, mais a proximidade da transição de Hong Kong, foram os outros factores que, na opinião dos analistas de informação das Forças de Segurança, determinaram o reacender do rastilho. Para já não contar com as rivalidades históricas e sempre sangrentas entre as seitas de Macau e Hong Kong.A Associação dos Quatro Unidos nasceu desta forma e passava a ter como principal fonte de receita 10 por cento do lucro líquido obtido por cada uma das salas VIP dos casinos e pelos diferentes grupos de "junkets" que ali operam. Nas declarações feitas pelos quatro chefes, não coincidem as opiniões quanto à dimensão do negócio. Pang Nga Koi, por exemplo, afirmou à polícia que a divisão feita na reunião permitiria ao seu grupo, a 14 K, receber mensalmente cerca de dois milhões e meio de patacas, 30 a 40 por cento dos quais seriam para ele e o restante para a 14 K e a Quatro Unidos. Já os restantes chefes deram números que variaram entre os sete e os 16 milhões.Todos convergiram, porém, num ponto: decidiram "solicitar" à STDM que fosse aberta uma nova sala VIP no Hotel Lisboa, cujo nome seria Sala de Macau, e instalar aí um grupo de "junkets" que começará a operar com "um bilião de fichas 'mortas'". A pagar também, obviamente, os tais 10 por cento para a Quatro Unidos. Em troca, as quatro seitas ofereceriam a habitual "protecção" aos operadores dos casinos.Meses depois estava instalada a guerra e o pânico nas ruas de Macau, com a situação a escapar ao controlo das autoridades portuguesas. Só a China conseguiu uma trégua para não perturbar a cerimónia de transição em Hong Kong. Mas, regressada a colónia britânica à soberania chinesa, a violência voltou de imediato.