Um santo ou um cúmplice de Hitler?
Mesmo com um processo de canonização em curso, a figura do Papa Pio XII continua a ser a mais controversa da Igreja Católica neste século. Um livro com o título "O Papa de Hitler" tem de ser mais do que uma provocação. É uma acusação. O pecado de Pio XII, afirma o autor, não foi só o silêncio. Já seria imenso, mas foi pior: ele foi cúmplice das forças mais negras da sua era e das suas mais abomináveis atrocidades.
John Cornwell, investigador e jornalista britânico, é bem conhecido do Vaticano. E era, até agora, geralmente apreciado. Com "A Thief in the Night", sobre a ainda misteriosa morte do Papa João Paulo I no final dos anos 70, causou um desgosto a todos os adeptos da teoria da conspiração, "provando" que não houve assassínio. Ao mesmo tempo, desenhava de maneira perfeita os meandros do centro de poder da Igreja Católica. Depois disso, as suas biografias jornalísticas de João Paulo II, peças premiadas, não foram propriamente recebidas com salvas de palmas nos corredores do Vaticano, mas foram acolhidas com respeito.Em 1999, Cornwell voltou a atacar. E a Igreja Católica não está satisfeita. Vamos acreditar na boa fé do autor e dizer que ele também não. Quando alguém garante, como ele faz, que começou uma investigação para prestar justiça ao Papa Pio XII e que, a certa altura, se sentiu em estado de "choque moral" com o que tinha descoberto, não é isso que se pode dizer?O "choque" desaguou em indignação. "Hitler's Pope" (ed. Viking) é um processo de acusação com 400 páginas: o homem que se tornou Papa no ano em que estalou a Segunda Guerra Mundial manietou os católicos alemães na oposição a Hitler, silenciou o Holocausto, as matanças de ortodoxos e judeus na Croácia e auxiliou criminosos de guerra em fuga aos Aliados. Tudo para reforçar o poder do Vaticano e travar o passo ao comunismo.Em resultado de uma investigação tão exaustiva que pode parecer obsessiva, Cornwell "persegue" Pio XII desde a infância, como se estivesse a apresentar perante um júri as motivações morais, ou as justificações, para os "crimes" que ele mais tarde cometerá. O homem que seria Pio XII nasceu como Eugenio Pacelli em 2 de Março de 1876, numa família de advogados do Vaticano, senhoras pias e homens da Igreja. A concordância de depoimentos e registos faz com que as primeiras páginas da biografia pareçam pertencer ao processo de canonização, mas estão salpicadas de pequenas maldades. Por exemplo, quando se afirma que na escola primária frequentada por Pacelli o director, o senhor Marchi, tinha o hábito de fazer discursos aos miúdos sobre a "obstinação dos judeus". E se observa, pondo as palavras na boca de outro biógrafo, que o senhor Marchi sabia que "as impressões que se produzem nas crianças jamais se perdem".Para Eugenio, a Igreja era quase tudo. A sua brincadeira preferida era vestir-se de padre e dar a missa, com a cumplicidade da mãe que, mais do que zelosa, lhe arranjou uma peça de roupa em damasco e o ajudou a montar um altar no quarto. Houve um ano em que imitou as cerimónias completas da semana santa. Muito inteligente, solitário, devoto, cultivando o isolamento, foi ordenado em Abril de 1899, com 23 anos, enquanto continuava a estudar Direito Canónico, seguindo as pisadas do pai. Entraria para a Secretaria de Estado do Vaticano em 1901 e três anos depois já estava a trabalhar numa revisão das leis canónicas de que foi um dos maiores artífices e que iria ser publicada em 1917.E que Igreja era esta que Pacelli servia? Era uma igreja acossada e sem poder. Em 1870, no culminar do processo de unificação da Itália, os Estados pontifícios tinham desaparecido, o Papa estava confinado ao Vaticano, na França e na Alemanha floresciam campanhas anticatólicas, o socialismo ganhava terreno.Antes de a Primeira Guerra Mundial estalar, já Eugenio Pacelli era uma figura influente, manobrando habilmente vários aspectos da diplomacia do Vaticano, que procurava desesperadamente recuperar a sua influência internacional. Cornwell atribui-lhe um papel decisivo na assinatura de uma concordata com o reino da Sérvia, documento que acabaria por ser um contributo para as tensões entre o Império Austro-Húngaro (ignorado nesta negociação com um quase-protectorado) e os sérvios que haveriam de dar origem à guerra.Veredicto de Cornwell, com lições para o futuro: "O que é claro neste episódio é o impacto potencialmente negativo da diplomacia do Vaticano nas relações culturais e políticas, o seu poder para provocar frustração e insegurança, a sua capacidade para complicar e perturbar ainda mais as tensões crescentes entre países. (...) O episódio marca o terrível começo da tendência de alheamento de Pacelli das consequências políticas das suas acções diplomáticas."Já com o Papa Benedito XV (sucessor de Pio X) no trono de Pedro, Pacelli foi feito bispo em 13 de Maio de 1917, o dia da aparição mariana de Fátima, e menos de uma semana depois partia para a Alemanha como núncio papal. Missão: encontrar caminhos para a paz. Ficaria treze anos.Esteve assim no centro da tempestade do pós-guerra, foi testemunha dos excessos e assassínios da Revolução Vermelha em Munique, e há um episódio de 1919 referido como uma das explicações para o seu ódio pelos comunistas, quando ele próprio teve de enfrentar uma multidão que se deslocara à nunciatura para confiscar o seu carro. É também uma ilustração "da sua coragem face ao perigo pessoal e do tremendo poder da sua personalidade pia". Pacelli teve uma arma apontada ao peito e não tentou impedir sequer que levassem o carro, mas a calma com que falou parece ter demovido os assaltantes de realizarem maiores desmandos na nunciatura. O seu médico diz que sonhou com o incidente até ao fim da vida, em missivas para o Vaticano verberou a "tirania revolucionária judaico-russa" e não é difícil imaginar que as faces iradas dos assaltantes se tenham transformado, para ele e para sempre, no rosto do comunismo.Nos anos seguintes, os da República de Weimar e da ascensão de Adolf Hitler ao poder, a sua preocupação principal foi estabelecer uma concordata com a Alemanha. Não o conseguiu até ser chamado de volta a Roma em 1930, mas nunca desistiu e, por isso, esteve sempre envolvido na política alemã.Este envolvimento constitui uma das principais peças da acusação de Cornwell. O que ele alega - e críticos do livro dizem que não o demonstra convincentemente, embora lhes falte explicar o que seria "convincente" - é que Pacelli se deixou enlear em movediças negociatas com Hitler.O objectivo foi sempre um e o mesmo: concluir uma concordata para garantir a livre actividade e existência da Igreja Católica no seio de uma ditadura - à semelhança do Tratado de Latrão estabelecido em 1929 com a Itália de Benito Mussolini.Não foram poucas as contrapartidas que foram sendo exigidas, e conseguidas, por Hitler. O resumo da versão negra de Cornwell é este: Pacelli empurrou, primeiro, o Partido do Centro, católico, para apoiar a eleição de Hitler como chanceler; depois, aceitou de tal maneira esvaziar esse partido que ele acabou por desaparecer e, com ele, a possibilidade de uma oposição forte ao ditador; por fim, todo o processo emprestou credibilidade internacional ao chefe nazi. Mais grave, se possível: vieram do Vaticano as ordens para que, em 1933, para não prejudicar as negociações, os sacerdotes católicos colaborassem com os nazis fornecendo às autoridades atestados de "pureza sanguínea" através de certidões de baptismo e casamento. Uma peça na campanha de limpeza anti-semita, então no seu início, um exemplo indesmentível de cumplicidade. "Era esta a realidade do abismo moral para o qual Pacelli, o futuro pontífice, tinha conduzido a em tempos grande e orgulhosa Igreja Católica alemã. E, nesta altura, Pacelli não tinha ilusões sobre a natureza violenta do regime nazi." Aos católicos ficava imposto o dever moral de obedecer aos senhores nazis.Para mais, o passar dos anos mostrou, com perseguições, julgamentos e actos violentos, que o objectivo da concordata aos olhos do Vaticano - garantir a liberdade de existência e actividade - era uma ilusão. As tensões entre os nazis e a Igreja Católica chegaram a um ponto em que as meias palavras, ou menos do que isso, do Vaticano não bastavam de todo. E o Papa Pio XI, já muito doente, fez publicar a encíclica "Mit brenneder Sorge" (Com profunda ansiedade), condenação clara do tratamento que os nazis davam à igreja. O documento é considerado um exemplo de coragem papal e é citado - nota Cornwell - como contraste face ao silêncio de Pacelli durante a guerra. Mas nessa altura já Hitler e os nazis tinham muito pouco a temer de uma Igreja Católica inerte.Tudo se ia tornando tão intolerável que Pio XI, quase moribundo, ordenou a redacção de uma outra encíclica, "Humani generis unitas", que deveria ser mais veemente na condenação dos nazis. O documento chegou ao papa dias antes de ele morrer, em 9 de Fevereiro de 1939. Nunca foi publicado. "Pacelli, que em breve seria Papa, enterrou o documento no fundo dos arquivos secretos" - diz Cornwell. Esta "encíclica perdida" apenas foi conhecida há pouco, a partir de um projecto de redacção, em francês, recuperado por investigadores belgas. Mas o que se conhece não é propriamente exaltante. Veja-se esta passagem: "A Igreja só está interessada em manter o seu legado da Verdade... Os problemas puramente mundanos, em que o povo judeu se possa ver envolvido, não são de interesse para ela."Com o começo da guerra, em Setembro de 1939, o Holocausto tornou-se imparável, e a Pio XII, já Papa, o que é censurado, acima de tudo, é o silêncio cúmplice. É uma polémica de sempre, em que num dos pratos da balança, aquele em que repousa a defesa da Igreja, está a justificação de que protestos veementes e exagerados teriam um resultado contrário ao desejado. Não faltam, é verdade, provas disso mesmo. Quando o arcebispo de Utrecht condenou a prisão de judeus, encaminhados em vagões "para o Leste", os nazis responderam com a aceleração da "solução final" na Holanda, não só com deportações mas com o assassínio sumário de 40 mil pessoas.Para Cornwell, e não só, esta explicação não basta, não justifica um silêncio tão ensurdecedor de Pio XII. Só uma vez, na véspera do Natal de 1942, ele falou mais abertamente, no que a Igreja apresenta como uma denúncia aberta do extermínio: "A Humanidade deve este voto a essas centenas de milhares que, sem terem cometido qualquer falta, às vezes apenas por causa da sua nacionalidade ou raça, são marcados para a morte ou para a extinção gradual."Parece pouco para a imensidão do Holocausto. Para Cornwell é pouco, embora vozes da Igreja o tenham atacado por passar por alto os aspectos positivos do pontificado, designadamente a ajuda a centenas de milhares de judeus e outros que procuravam escapar ao nazismo. Mas o autor não poupa golpes: "O falhanço em pronunciar uma palavra clara sobre a 'solução final' em progresso proclamou ao mundo que o Vigário de Cristo não se comovera para a piedade e para a raiva. Deste ponto de vista, era o Papa ideal para o plano inominável de Hitler. Ele era o peão de Hitler. Era o Papa de Hitler." Em 1946, com a guerra terminada, Pio XII assegurou num discurso: "Condenámos, em várias ocasiões no passado, as perseguições que um anti-semitismo fanático infligiu ao povo hebraico". Ainda Cornwell: esta "grandiloquente autodesculpa de 1946 revelou-o não apenas como um Papa ideal para a 'solução final' dos nazis, mas como um hipócrita".Um silêncio cúmplice, pelo menos tão incompreensível, foi o que o Vaticano teve em relação às atrocidades cometidas a meio da guerra pelo regime croata de Ante Pavelic, que dizimou centenas de milhares de sérvios ortodoxos e também judeus. No caso croata, existe a agravante de a bandeira do catolicismo ser empunhada pelos facínoras de Pavelic, para já não falar dos inúmeros testemunhos dando conta de que padres católicos estavam muitas vezes à frente das mais abjectas operações de limpeza.Um dos lugares-tenente de Pavelic, o padre Dragonovic, criminoso de guerra, encontrou refúgio no Vaticano até Pacelli morrer, em meados de Outubro de 1958, o que pressupõe um caso de quase protecção pessoal.Na morte - expressões de Cornwell -, Pio XII deixou uma Igreja centralizada, um "monolito legalista" em que o Papa era "a primeira e última autoridade, disciplinada, triunfalista, admirável de tantas maneiras, e desligada do mundo". Segundo o autor, "a Espanha de Franco e o Portugal de Salazar continuavam a caracterizar a sua noção de sociedades ideais". Na Itália do pós-guerra teve palavras para com os comunistas como nunca tinha tido para com os nazis, a que não faltaram sequer ameaças de excomunhão aos católicos que se deixassem seduzir pela bandeira com a foice e o martelo.Era um dinossauro, mas respeitado, reverenciado, inspirador de uma autocensura nos círculos ligados ao Vaticano de tal ordem que só anos depois de morrer se soube da corrupção acelerada do seu corpo, por causa de uma mal sucedida operação de embalsamamento. Os intestinos não foram extraídos, do caixão em São Pedro saíam ruídos de decomposição, o cheiro insuportável fez desmaiar um dos guardas, a cara do cadáver tornou-se esverdeada e depois púrpura, o nariz ficou negro e caiu. "Nos anos seguintes, os críticos ao seu reinado iriam apontar estas circunstâncias insalubres como exemplo do final corrupto do papado mais absolutista da história moderna" - escreve Cornwell. Parece que Pacelli dava crédito às profecias do monge irlandês Malaquias, que escolheu a designação de "Pastor Angelicus" para o 262º Papa, que acabaria por ser ele. O Pastor Angélico, sempre silencioso, sempre neutral. No Vaticano, durante a guerra, o diplomata norte-americano Osborne escrevia a uma amigo, em jeito de desabafo, de frustração, de raiva: "Se Malaquias tivesse escolhido Leo Furibundus (Leão Feroz), as coisas poderiam ter sido muito diferentes."E Pacelli/Pio XII, o que diz no seu testamento o menino que gostava de brincar às missas?"Tem piedade de mim, Senhor, de acordo com a Tua misericórdia; o conhecimento das deficiências, falhanços, pecados, cometidos durante um pontificado tão longo e numa época tão grave tornou mais claras, para mim, as minhas insuficiências e imerecimentos. Humildemente peço perdão a todos os que ofendi, prejudiquei e escandalizei."Será canonizado?