(Quase) tudo sobre Almodóvar
Uma mãe perde um filho e redescobre-se mãe através de uma criança alheia. Um travesti elogia a autenticidade do seu novo corpo. Um filho procura um pai sem saber que ele agora é ela. Em vez da família, há um elo de fraternidade entre mulheres - não há homens, ficaram na parte rasgada das fotografias ou mudaram de sexo. "Tudo Sobre a Minha Mãe", o último filme de Pedro Almodóvar.
Os bons sentimentos não fazem as boas acções, mas "Tudo sobre a Minha Mãe" é uma excepção. É um grande melodrama multicolor, simultaneamente fluido e desmesurado, sem tabus nem preciosismos, nem provocador bem pensante. É o filme livre de um cineasta que demonstra, em imagens, que maturidade e juventude de espírito são compatíveis. Para Pedro Almodóvar, claramente decidido a distanciar-se dos que querem cindir a sua carreira entre período rosa mais olé olé e período azul mais austero (a partir de "A Flor do Meu Segredo"), não há antes nem depois. Pelo contrário, há uma progressão lógica que vai das loucuras "kitsch" marcadas pela "movida" madrilena até ao seu trabalho actual, mais centrado sobre o drama e menos obstinadamente provocador. Desta entrevista, há a reter quatro coisas: 1. que, apesar da "austeridade" muito relativa dos seus últimos filmes, sempre desviantes, Almodóvar é um ser secreto que se esconde atrás das personagens; 2. que a sua mãe verdadeira [recentemente falecida] nada tem a ver com a do filme, mas que, em contrapartida, é um assunto inesgotável - de conversa; 3. que os homens não o inspiram muito; 4. que ele é uma esponja que se alimenta de tudo - da imprensa, do cinema, do teatro, dos seus encontros, para moldar as suas violentas ficções. Diálogo pudico com um artista no cinema particularmente impudico.PERGUNTA - O título do filme sugere uma obra autobiográfica. Mas, na verdade, parafraseia "All about Eve", o filme de Mankiewicz. Não há nada de autobiográfico?PEDRO ALMODÓVAR - Em todos os meus filmes, há uma dimensão autobiográfica. Estou por trás de tudo o que se passa, de tudo o que se vê, de tudo o que se diz. Mas nunco falo de mim na primeira pessoa. Há qualquer coisa que me impede de abordar um projecto claramente autobiográfico. Evidentemente que, neste caso, não é da minha mãe que se trata, mas de uma personagem de ficção. No entanto, em determinada altura, tive vontade de me instalar diante da minha mãe com uma câmara e de a deixar falar. Neste projecto que não realizarei jamais, a minha mãe teria falado de si própria ou do que quisesse. Tencionava dar-lhe a ler extractos de livros que me dão prazer, para que se ouvisse a sua voz.Estava a meio do argumento, quando me apercebi que estava a falar de outra coisa. Pouco a pouco, o filme tornou-se um coro feminino. Compreendi que o tema era a maternidade, a dor de ser mãe. O filme levanta uma questão muito importante: o que é a família neste final de século? A instituição familiar mudou muito desde há 15 anos. Vamos entrar num mundo em que as famílias numerosas se vão tornar raras e em que muito poucas pessoas viverão em família toda a sua vida. Este esquema familiar já quase não existe. No filme, esse esquema é substituído pela solidariedade natural. É uma coisa essencial. Todos os tipos de família se podem formar a partir do momento em que há afecto. Inevitavelmente, haverá sempre alguém que assume o papel de mãe. No final do filme, Manuela [Cecilia Roth] será a mãe de um filho que não é dela. O essencial é comportar-se bem com as pessoas que nos rodeiam.Mas eu via que a minha mãe contava coisas diferentes do que nelas estava escrito. Como ela conhecia a vida das mulheres da aldeia, dizia-lhes o que lhes dava prazer. As ouvintes ficavam encantadas. Eu ficava doido quando via que a minha mãe inventava metade da carta. Creio que essa foi a mais importante lição que recebi sobre a relação entre a realidade e a ficção. Compreendi que a minha mãe fazia exactamente como os artistas. Inspiram-se na realidade, mas adaptam-na.O filme conta também como é que esta mulher, Manuela, no desespero mais absoluto - quando vai a Barcelona, depois da morte do filho, Manuela é um fantasma -, se encontra num estado que lhe permite ajudar os outros. Como já nada tem a perder, pode adaptar-se a qualquer situação. Está na melhor disposição possível para se integrar na vida dos outros. Recomeça a viver, a sentir. Imagino que, quando uma pessoa perde o filho, é como se um raio se abatesse sobre ela. E, pouco a pouco, as suas células regeneram-se. Uma pessoa regenera-se estabelecendo novas relações com os outros.Mas, quando começo a escrever qualquer coisa, começo a escrever sem analisar e as coisas vêm naturalmente. Por isso me espanta ver que neste filme, por uma razão misteriosa, eu tenha delineado estas personagens de homens: um que morre, outro que é um travesti e aquele outro é velho e sofre da doença de Alzheimer. Não é assim que vejo os homens. "Em Carne Viva", por exemplo, é um filme viril, feito do ponto de vista masculino e mostra exclusivamente o aspecto mais negativo da masculinidade. Aliás, sinto-me muito próximo do que era representado nesse filme e isso faz-me cócegas no meu pudor.Alguns dos meus filmes são irreais, como "Kika" e "Matador", que são totalmente abstractos e em que as ideias contam mais que as personagens. Em todas as minhas outras ficções, inspirei-me mais na realidade. Evidentemente que o tigre do convento de "Negros Hábitos" é totalmente imaginário. Naquela época, gostava de abordar, como Buñuel e os surrealistas, o irracional no quotidiano. Mas os meus filmes nunca são surrealistas. Sei que o meu último filme agrada às pessoas que gostam da minha nova tendência sóbria, mas, para mim, isso faz parte de um todo.Porquê Barcelona? Porque é a passagem obrigatória para os travestis espanhóis. Todos os que conheço passaram por lá. Vão fazer os seios a Paris, depois voltam para Barcelona para trabalhar. A personagem de Lola é, em parte, inspirada num travesti que fez este percurso. Tendo um pequeno comércio na praia, passeava-se em biquini, mas proibia à mulher de usar minissaia. Quando me contaram isto, esta atitude pareceu-me a melhor demonstração possível contra o machismo ou contra qualquer preconceito, porque é completamente irracional. Depois, Barcelona é uma cidade tão bela que isso constituía mais uma razão para ir trabalhar para lá: é um maravilho palco de cinema.Tradução de Maria de Carvalho Torres