Amélia Muge, a rebelde
Rodeada de convidados de peso, Amélia Muge recebeu no sábado à noite, na Damaia, o Prémio José Afonso, durante um concerto em que cantou, num espectáculo diferente, todos os temas do disco "Taco a Taco", obra pela qual foi distinguida.
Amélia Muge cumpriu a promessa de fazer "um espectáculo diferente" no concerto que deu, anteontem, no Cinema D. João V, na Damaia, no âmbito do XII Festival de Música Popular Portuguesa da Amadora. Em causa estava a entrega do Prémio José Afonso, que lhe foi atribuído em Julho passado pela Câmara Municipal da Amadora. Para ajudar a levar "Taco a Taco" ao palco, não faltaram à convocação as percussões dos Tocá Rufar e do OÓQueSomTem de Rui Júnior (também nomeados para o prémio). Estiveram ainda em palco o contrabaixo de Yuri Daniel e os saxofones de João Courinha. A recebê-la, Amélia Muge tinha pela frente uma plateia praticamente lotada.Foram precisos três discos e mudanças várias de editora para que Amélia Muge tivesse, finalmente, com o Prémio José Afonso, o reconhecimento devido. Esta mesma distinção tinha já sido dada ao projecto "Maio Maduro Maio" onde Amélia também participou com José Mário Branco e João Afonso. Com a companhia habitual de António José Martins (responsável pelos arranjos e direcção musical) e da guitarra de Rui "Dudas" Pereira (líder do projecto Ficções), Amélia Muge prometera uma apresentação fora do habitual de todas as canções de "Taco a Taco". O espectáculo não começou com o pé direito. Marcado para as 21h30, eram ainda 22h e nada indicava que o início estivesse próximo. O público começava a ficar impaciente e até ensaiou palmas de protesto. Não tardou a explicação: "Pedimos desculpa pelo atraso, mas este é um concerto complexo e com algumas dificuldades ao nível da montagem". Um pormenor, face ao que se passaria a seguir, como frisou, com razão, Júlio Murraças da Câmara Municipal da Amadora. E, no minuto seguinte, as luzes apagaram-se e Amélia, sózinha com a sua viola, sentou-se e arrancou com "À Janela", uma canção retirada de "Múgica", o seu trabalho de estreia.Finda a primeira surpresa da noite, apareceram no palco a bailarina Cristina Benedita e a actriz Genoveva Faísca, que recriaram, ao longo de todo o espectáculo, os personagens vários que habitam "Taco a Taco". As atenções viraram-se, depois, para "Ai Flores", tema de abertura do álbum premiado, originalmente lembrando cantares africanos e agora vestindo umas simpáticas roupas jazzy, facto a que não foi alheia a contribuição de Yuri Daniel e João Courinha. Seguiram-se "O Tolinho da Aldeia", um poema de Grabato Dias musicado por Amélia Muge, e o fado "Há Quem Te Chame Menina", onde Lisboa, eternamente cantada no feminino, assume a figura de um cavaleiro.Os Tocá Rufar e os OÓQueSomTem ajudaram à vertigem ininteligível de "Amphiguris", um texto retirado do cancioneiro popular algarvio. A música seria intencionalmente interrompida para que quatro elementos dos Tocá Rufar demonstrassem o seu virtuosismo no jogo do pau, no que foi um dos momentos altos da noite. A primeira parte terminou com o tema "Taco a Taco", onde Amélia consegue o prodígio de cantar repetidamente um incompreensível puzzle vocal. Após o intervalo, o D. João V ficou, por alguns momentos, mais sério. Era chegada a hora de a Câmara da Amadora entregar o Prémio José Afonso 99. De lista de nomes em riste, Amélia avisou logo que não tinha jeito nenhum para agradecimentos infinitos. Assim, começou por mencionar a qualidade do trabalho dos outros nomeados, entre os quais se encontravam Mísia (que nessa noite também actuava no Auditório da Culturgest), António Chaínho, Camané, Frei Fado del Rei, Rão Kyao e Realejo.Optou, depois, por chamar ao palco companheiros de trabalho desde a primeira hora e pediu uma salva de palmas para dois ausentes muito especiais: António Quadros (ou se preferirem Grabato Dias) e Zeca Afonso. E foi também com "Andor e Conduto" que teve início a segunda parte do concerto, uma paródia à encomendação das almas que Grabato escreveu aquando da morte de Zeca.Seguiram-se as "Falas de Bem Querer" onde o piano de António José Martins, juntamente com Courinha e Yuri Daniel, tentou recriar o espírito intimista que já em CD se tinha concretizado, com a ajuda de Carlos Bica.No palco, que parecia cada vez mais pequeno para abrigar todos os convidados, desfilaram ainda "Poema de Bancada", o lindíssimo "Havemos De Nos Ver Outra Vez" e "O Robot Que Envelhece". A noite terminou com "Rebelde (aos ciclos)", uma canção de formato clássico, o hino à diferença que é "Ainda Bem Que Há Esquimós" e o rap, versão Amélia Muge, de "Idades e Médias", um protesto contra o mundo feito números, introduzido pelo "talking drum" de Rui Júnior, a que também ajudou a Companhia Tocá Rufar.No final do espectáculo e depois dos agradecimentos, no écran colocado ao fundo do palco, projectou-se a imagem de José Afonso, que Amélia aplaudiu antes de se retirar.