Chuva por encomenda

O homem não comanda a chuva, mas vontade não lhe falta. Vão realizar-se em Portugal os primeiros estudos sobre precipitação provocada, que há muitos anos são vulgares noutros países, ainda que a título puramente experimental. Alguém quer agora saber se, por cima de Portugal, é possível manipular a água que vem do céu.

Os homens que fazem chuva chegaram ontem a Portugal. São russos, de um instituto de investigação hidrometeorológica de Moscovo, e vieram num avião-laboratório que fará o primeiro estudo sobre precipitação provocada em Portugal. A ideia, na verdade, pertence a uma equipa da Universidade Lusófona, em Lisboa, e conta com a colaboração do Instituto de Meteorologia.Os voos do avião - um Antonov 30 que a Lusófona contratou aos Serviços Federais da Rússia para a Hidrometeorologia e Monitorização Ambiental (Rosgidromet), por cerca de 185 mil dólares (à volta de 34 mil contos) - começam nesta semana e vão prolongar-se por um mês. Num raio máximo de 200 quilómetros em torno do radar do Instituto de Meteorologia em Coruche, o avião atravessará os tipos de nuvens mais frequentes em Portugal no período dito seco, entre Maio e Outubro. Para já, o objectivo é conhecer o que se passa dentro das nuvens do ponto de vista da microfísica - a dimensão das gotas, a sua distribuição e as temperaturas, por exemplo. É que elas não são iguais em todo o mundo.O advogado Joaquim Ortigão, presidente do Instituto de Estudos Ambientais e Meteorológicos da Lusófona, responsável pela experiência, é claro nos seus objectivos: "O projecto tem como finalidade o estudo da microfísica das nuvens, para verificar a possibilidade de provocar a precipitação". A justificação para este tipo de estudo, que mais parece uma história de ficção científica embora seja comum em países como os Estados Unidos, Israel e África do Sul, é muito simples. "Temos falta de água", diz Manuel Sobral Bastos, do mesmo instituto: "Vamos analisar até que ponto podemos chegar a um estado de chuva provocada para combater a desertificação e os fogos florestais, tentando manter um nível de humidade no solo superior ao que é normal no período seco. Israel conseguiu grandes aumentos da precipitação, principalmente na faixa norte do país. Os russos também têm feito voos de estudo e provocado chuva em países do mundo árabe".Se os resultados sobre a microfísica das nuvens forem animadores, o avião-laboratório avançará para uma experiência de precipitação forçada. O processo que origina a chuva, chamado inseminação das nuvens, consiste no lançamento de produtos que aceleram a aglutinação das pequenas gotículas de água e vapor dispersas pela nuvem, para que ganhem peso e caiam pela acção da gravidade. O iodeto de prata, o azoto líquido, o vulgar sal de cozinha e o nitrato de amónia são alguns dos produtos utilizados."Dentro das nuvens, existem gotas de água, mas são de dimensões extremamente pequenas, que podem não ter capacidade para cair sob a acção da gravidade. Não é por haver gotas que há chuva", explica o meteorologista Alexandre Corte Real, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. "Quando uma gota cai, pode evaporar-se antes de chegar ao solo. É preciso que as gotas sejam grandes para que possam cair e chegar ao solo."A fase dos voos com o avião russo foi precedida pela identificação dos tipos de nuvens mais frequentes em Portugal - um estudo que a equipa da Lusófona pediu a Corte Real e que se baseou em dados dos últimos 15 anos. "Sabemos que as nuvens mais favoráveis a este processo são as de tipo cumuliforme", explica Corte Real. É o caso dos cúmulos (nuvens com a superfície inferior plana e que, na parte superior, são semelhantes a grandes flocos de algodão) e os cúmulo-nimbos (escura e espessa, em forma de torre ou montanha). "Também sabemos - prossegue Corte Real - que é mais provável nos meses de Maio e Outubro encontrar nuvens deste tipo no Centro do país, onde ocorrem mais fogos. Mas agora é preciso saber se as nuvens convectivas que afectam o nosso território são adequadas provocar a precipitação."Independentemente dos resultados, Corte Real sublinha o carácter inédito da experiência: "Um dos seus méritos é que é a primeira vez que se faz em Portugal. Não é banha da cobra, pelo contrário: é um problema científico estudado há muitos anos". Mas o sonho de manipular o tempo está longe de uma concretização eficaz. "Em alguns locais, os resultados são inconclusivos. Noutros, houve resultados positivos, mas não numa base operacional. Não podemos dizer que, se pusermos um avião no ar, vai chover. E mesmo que provoque chuva, pode acontecer que não caia nos locais desejados. Também não podemos apagar fogos nem esperar que este processo seja uma espécie de mangueira que produz água quando se quer." Nem tudo é impossível, no entanto: "Podemos conseguir que o solo esteja mais húmido do que estaria sem estas experiências". Daí que a Direcção-Geral das Florestas e a Comissão Nacional Especializada em Fogos Florestais tenham prometido apoio financeiro ao projecto, segundo Joaquim Ortigão.A opinião de Carlos Direitinho Tavares, do Instituto de Meteorologia, não se afasta muito da de Corte Real. "Os serviços meteorológicos de Marrocos têm um avião para fazer inseminação de nuvens. A precipitação provocada já é estudada nalguns países há muitos anos, mas é utilizada mais de forma experimental e não claramente operacional." Fazer com que a água caia das nuvens não é nada fácil: "Para haver precipitação, é necessário haver mecanismos que provoquem a formação de nuvens. A inseminação de uma nuvem pode não criar precipitação suficiente, dado que o conteúdo em água da nuvem é limitado. O processo contínuo de formação das gotículas promove a coalescência [aglutinação das gotículas] e essa água cai. Mas tem de haver um mecanismo que realimente a nuvem de gotículas."Fácil ou não, Sobral Bastos (oficial da Força Aérea na reforma, licenciado em Sociologia) e Joaquim Ortigão contam histórias que ilustram que a Rússia já utilizou técnicas de inseminação de nuvens para, por exemplo, desviar a chuva dos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, ou de grandes paradas militares. Resta saber se funcionam em Portugal.

Sugerir correcção