O fotógrafo das moléculas
Ninguém sabia o que acontece ao nível molecular na altura de uma reacção química. O egípcio Ahmed Zewail inventou uma técnica com lasers ultra-rápidos que captam imagens do que acontece aos átomos e às moléculas quando se quebram as suas ligações químicas e se formam outras.
Já imaginou ver um jogo de futebol na televisão em que o realizador não repete, em câmara lenta, nem as jogadas mais espectaculares nem os golos? Não teria tanta piada, pois não? O que acontecia aos átomos durante as reacções químicas era mais ou menos o menos, até que o cientista egípcio Ahmed Zewail, naturalizado norte-americano, desenvolveu no final dos anos 80 uma técnica que permite conhecer em pormenor o que se passa em cada momento de uma reacção. Ontem, a Real Academia das Ciências Sueca atribuiu a Zewail, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, em Pasadena (EUA), o Prémio Nobel da Química "por ter mostrado que é possível observar, através de uma técnica de laser rápido, como se movimentam os átomos de uma molécula numa reacção química". Portanto, pode dizer-se que Ahmed Zewail, de 53 anos, é uma espécie de fotógrafo do mundo infinitamente pequeno das moléculas, uma vez que a sua técnica pode descrever-se como a câmara mais rápida do mundo. De facto, tal como uma câmara lenta explora os pormenores de um jogo de futebol, a técnica de Zewail revelou o que acontece aos átomos e às moléculas quando se quebram as suas ligações químicas e se formam outras. Aquela técnica, explica o comunicado da Real Academia das Ciências Sueca, em Estocolmo, utiliza "flashes" produzidos por disparos de laser de curtíssima duração, tão rápidos como as reacções químicas - ou seja, entram no mundo dos femto-segundos. Um femto-segundo são 10-15 ou 0,0000000000000001 segundos, o que representa para um segundo o mesmo que um segundo é para 32 milhões de anos. A esta área chama-se química do femto-segundo, que se inclui na química física, e permite compreender por que razão se dão certas reacções químicas e outras não. Também explica por que razão a velocidade das reacções depende da temperatura. Até há muito pouco tempo quase nada se sabia sobre o caminho percorrido pelas moléculas quando se desfazem as ligações químicas e estão num estado denominada transição. Supunha-se - não passava de uma suposição teórica - que o estado de transição seria muito, muito rápido. No final dos anos 80, Zewail fez um conjunto de experiências que levaram ao nascimento da química do femto-segundo, em que se tornou possível obter imagens das moléculas precisamente no estado de transição. O que os cientistas então descobriram foi a existência de substâncias que se formam durante o caminho entre o produto inicial e o final, que se chamam intermédios. As aplicações da química do femto-segundo são muito variadas: desde o funcionamento de catalizadores até dispositivos de electrónica molecular, que poderão permitir a compreensão de mecanismos biológicos e com aplicações na medicina - a fotomedicina. Por exemplo, no tratamento do cancro da pele."Zewail recebe o Prémio Nobel porque o seu trabalho significa que chegámos ao fim do caminho: nenhuma reacção química é mais rápida do que isto. Pela primeira vez, com a espectroscopia do femto-segundo podemos observar em 'câmara lenta' o que acontece quando se atravessa a barreira das reacções", diz a academia sueca.Sílvia Brito Costa, professora catedrática do Departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico (IST) em Lisboa, visitou o Instituto de Tecnologia da Califórnia em 1983 e conversou com Zewail, além de que ambos já se cruzaram em vários congressos científicos. "O trabalho do professor Zewail foi um grande avanço na química física. Ele criou a química do femto-segundo, que é o limite da química. A partir daí deixa de ser química, é física. O seu trabalho dá-nos uma espécie de filme dos processos químicos, porque permite ver o movimento dos átomos passando por um intermédio. Mostra que é possível detectar esse intermédio." Sobre a atribuição do Nobel a Zewail, Sílvia Brito Costa considera-a óbvia: "Já há muito tempo que era indigitado para este prémio e a sua atribuição é de grande justiça".Para a agência Lusa, Gaspar Martinho, também do IST, comentou: "O chamado estado de transição, entre reagentes e produtos, deixou de ser uma entidade vaga e, com Zewail, passou a ter uma realidade experimental".Se apenas ontem a Real Academia das Ciências Sueca galardoou Zewail, a verdade é que o país de origem do cientista já o tinha distinguido: o rosto de Zewail anda nos selos de correio egípcios desde o ano passado. "Tenho orgulho que um filho do Egipto tenha sido coroado com o Prémio Nobel", disse ontem à AFP o ministro do Ensino Superior e Investigação Científica, Moufid Chehab. "É uma honra para o Egipto e para todos os egípcios".