O poeta que não gostava de música
João Cabral de Melo Neto morreu anteontem na sua casa do Rio de Janeiro. A crítica do seu país considerava-o unanimemente o maior poeta contemporâneo brasileiro. Nascido no Recife em 1920, estreou-se em 1942 com "Pedra do Sono" e atingiu a celebridade com "Morte e Vida Severina" (1965). Em 1990, recebeu o Prémio Camões. O PÚBLICO transcreve o último poema que publicou, numa revista do Porto.
Se se perguntar a qualquer crítico literário brasileiro qual é o maior poeta do seu país, boa parte deles não hesitará em avançar o nome de João Cabral de Melo Neto. E um dos seus mais persistentes divulgadores em Portugal, Arnaldo Saraiva, considera mesmo que, até à sua morte, anteontem, era "o maior poeta vivo de língua portuguesa". No entanto, embora tenha publicado o seu primeiro livro - "Pedra do Sono" - em 1942, aos 22 anos (numa tiragem de 340 exemplares), Melo Neto, ou João Cabral, como é mais conhecido, só alcançou verdadeira popularidade em meados dos anos 60, quando edita o poema narrativo "Morte e Vida Severina", um "auto de Natal" centrado na miséria do Nordeste brasileiro, formalmente devedor da tradição das trovas populares e da literatura de cordel. É também através deste livro que a sua obra começa a ser mais lida em Portugal, onde, ainda hoje, talvez seja menos conhecida do que a de outros poetas da sua geração, como Manuel Bandeira (de quem era primo pelo lado paterno) ou Carlos Drummond de Andrade. O próprio João Cabral se deslocou em 1968 ao Porto - onde depois viria a exercer funções diplomáticas - para acompanhar o êxito público que foi a representação de "Morte e Vida Severina" pelo grupo teatral dos estudantes da Universidade de S. Paulo.Se o reconhecimento crítico da importância da obra de João Cabral de Melo Neto pode considerar-se relativamente tardio, é igualmente verdade que, nas últimas décadas, nenhum poeta brasileiro foi tão estudado. Já na primeira metade dos anos 80, um inventário anotado da sua bibliografia passiva - "Civil Geometria" -, publicado no Brasil por Zila Mamede, exigiu mais de 500 páginas. Em Portugal, Óscar Lopes, Alexandre Pinheiro Torres, Arnaldo Saraiva, Rosa Maria Martelo e António José Ferreira Afonso são apenas alguns dos que lhe dedicaram estudos. E poetas como O'Neill e Sophia invocaram-no nos seus próprios versos. "João Cabral de Melo Neto,/ Você não se pode imitar,/ mas incita a ver mais de perto,/ com mais atenção e vagar,/ o que está como que em aberto,/ ainda por vistoriar (...)" escreveu Alexandre O'Neill. De facto, João Cabral não é apenas difícil de imitar - ainda que a sua influência seja óbvia em muita da poesia brasileira actual -, é também virtualmente intraduzível. O que decerto justifica a relativa escassez de edições estrangeiras da sua poesia, descontado o caso de Espanha e da América Latina, onde é já hoje bem conhecido. Diplomata de carreira desde os 25 anos, João Cabral foi colocado em Barcelona em 1947 - ali publicou dois volumes de poemas e um ensaio sobre o pintor Joan Miró -, tendo regressado a Espanha em 1962, desta vez para exercer funções em Sevilha. Uma cidade que afirmava conhecer "casa por casa" e que celebrará em 1990, quando já se aposentara, no livro "Sevilha andando". Já a sua passagem pelo Consulado Geral do Brasil no Porto - que dirigiu, na qualidade de embaixador, desde Janeiro de 1985 a Setembro de 1987 -, quase não se reflecte na sua obra. O que é compreensível, dado que esta permanência em Portugal coincidiu com um dos períodos mais penosos da sua vida. A sua primeira mulher morreu de cancro por esta altura e ele próprio foi submetido a três intervenções cirúrgicas. No entanto, foi nos primeiros meses de permanência no Porto que escreveu o essencial dos poemas reunidos em "Agrestes", que constitui uma espécie de inventário de modos de morrer. A obra poética de João Cabral, editada num só volume em 1994, pela Nova Aguilar, inclui mais de duas dezenas de títulos - sem contar com as antologias e compilações -, que vão de "Pedra do Sono" até "Crime na Calle Relator", publicado em 1987. Rompendo quer com as vias pelas quais se ia impondo o modernismo brasileiro e seus continuadores, quer com a poesia erudita tradicional, João Cabral, admirador confesso de Paul Valéry, procura construir uma poesia que, no plano formal, dispense a colaboração encantatória da música - terá sido dos raros poetas que confessou não ser um apreciador de música e abominar concertos -, e que, ao nível do conteúdo, recussasse o sentimentalismo e a idealização. "Esse negócio de inspiração não funciona" é um dos seus ditos mais citados. E suspeita tanto do eventual concurso das musas, que chegou mesmo a afirmar: "O que nasce com facilidade, rasgo-o". Numa entrevista conduzida por Arnaldo Saraiva e publicada no "Jornal de Letras", em Setembro de 1987, explica: "Prefiro usar uma linguagem áspera, como se fosse um chão de paralelepípedos, não um chão de asfalto. Se você usa um estilo que obriga o leitor a sobressaltos, esse leitor não se distrai". Que esta aversão à musicalidade do verso conviva com uma das mais rigorosas oficinas poéticas da língua portuguesa é o grande milagre da obra de João Cabral de Melo Neto, a quem será integralmente dedicado, em breve, um número da revista Colóquio Letras, já há muito em preaparação. Pelo modo como consegue conciliar a denúncia das injustiças sociais com um elevadíssimo grau de exigência estética, a poesia de João Cabral talvez possa ser aproximada, nesse aspecto, da do poeta português Carlos de Oliveira. Baixo, franzino, com um rosto que lembrava o de Vitorino Nemésio (o Melo do seu nome é de origem açoriana), João Cabral de Melo Neto, apesar da sua longa carreira como diplomata, nunca gostou muito de fazer vida social. Vítima de enxaquecas quase permanentes - confessou a Arnaldo Saraiva que tomava seis aspirinas por dia -, não gostava de conversar com mais de duas pessoas ao mesmo tempo. Nos últimos anos, doente e quase cego, praticamente não saía de casa e poucas visitas recebia. E deixou de escrever. Uma das excepções é o poema que aqui transcrevemos, ditado a sua mullher, Marly de Oliveira. Publicado no número inaugural de "Terceira Margem", a revista do Centro de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, dirigida por Arnaldo Saraiva, terá sido o último poema que publicou em vida. E talvez o último que escreveu, segundo acredita Arnaldo Saraiva, que se despediu do escritor, no Brasil, há precisamente oito dias. Nem sequer é provável que venham a surgir volumes póstumos com poemas inéditos, já que, na entrevista que deu ao "JL", João Cabral de Melo Neto garantia já ter avisado os filhos: "Quando eu morrer, tudo o que não foi publicado em jornal, em revista ou em livro, vocês rasgam".