Mulheres à volta de Pedro

Manuela perde o filho em Madrid e parte para Barcelona à procura do pai dele, que agora se chama Lola e tem seios maiores do que os dela. À volta dessa mãe estão uma actriz, um travesti e uma missionária. Estão todas, Cecilia Roth, Marisa Paredes, Antonia San Juan e Penélope Cruz, à volta de Pedro Almodóvar. Ele é o realizador e elas são as intérpretes de "Tudo Sobre a Minha Mãe". A PÚBLICA conversou com as actrizes.

Cecilia RothMais de 13 anos depois de "Negros Hábitos" e de "Que Fiz Eu Para Merecer Isto?", Pedro Almodóvar voltou a chamar Cecilia Roth para o seu espectáculo favorito: ver uma mulher chorar. Cecilia é argentina, trabalhou em Espanha durante uma fase de exílio na sua vida - décadas de 70 e 80, quando a ditadura militar apertava o seu país -, e voltou à Argentina para se consagrar como actriz. Quando agora regressou a Almodóvar, em "Tudo Sobre a Minha Mãe" - ela é a mãe, Manuela - o realizador reencontrou uma profissional no auge."É maravilhoso o que sente quando se trabalha num filme em que nos sentimos parte de uma família, e nos filmes de Pedro essa família repete-se sempre", diz Cecilia Roth. "Há sempre alguém que participou em filmes antigos e que regressa, e mesmo que não estejamos nos mesmos filmes, mantemos contacto uns com os outros. Fazemos parte dos filmes de Pedro e fazemos parte da sua vida. Ainda por cima ele conhece-nos de tal forma que sabe perfeitamente o que fazer para nos tocar, para provocar em nós o que quer".Chorar, por exemplo. Cecilia/Manuela chora em "Tudo Sobre a Minha Mãe", e é ela que vai cumprindo o ditado grego que diz que só as mulheres que lavaram os olhos com lágrimas conseguem ver claramente. Para chegar aí, Manuela tem primeiro que estar em fuga constante entre Madrid e Barcelona, numa espécie de túnel interior de conhecimento, recusa e aceitação.Manuela é mãe, e no dia dos anos do filho, Esteban, perde-o à porta de um teatro de Madrid, numa noite de chuva, onde se representa "Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams. Manuela foge para Barcelona para encontrar outro Esteban, o pai do seu filho, que 18 anos antes a tinha obrigado a uma primeira fuga, mas então no sentido inverso, quando ela descobriu que o homem com quem se casara tinha arranjado um peito maior do que o dela e se chamava Lola."É a primeira vez que Pedro troca Madrid por outra cidade, e é a primeira vez que ele olha para essa cidade como um espaço que recebe amorosamente alguém que sai de Madrid, perdido, em busca de si mesmo. Barcelona é uma cidade com mar, aberta, talvez mais cosmopolita e mais amigável do que Madrid", repara Cecilia. "Madrid perdeu aquelas coisas mais reais, verdadeiras: as pessoas sentarem-se nas praças para conversar ou terem tempo para dormir a sesta" (Pedro Almodóvar diria que "Madrid parece Oslo; o Partido Socialista Espanhol quis fazer de Madrid uma cidade como outra qualquer")Cecilia continua: "Para a minha personagem a viagem para Barcelona é uma busca espiritual, fugindo de Madrid que é o lugar marcado pela morte. Manuela vai a Barcelona, também, para tentar fazer aquilo que prometeu ao filho e que não pôde cumprir em vida dele: revelar-lhe quem era o pai".Manuela acabará com um terceiro Esteban nos braços, um filho reencontrado que lhe permitirá reconstruir a sua emoção de mãe, num filme onde se transplantam mais coisas do que o coração, onde não há homens - porque já são mulheres - e onde cada um pode encontrar, através do artifício, a verdade daquilo que quer ser: pai, mãe, homem ou mulher."As personagens têm uma identidade ambígua, ou travestida e disfarçada, mas são seres humanos. É por aqui, pelo que são, que se deve fazer a relação com elas, e não pela maneira como se representam", diz Cecilia. "Não sei de que é que depende a belíssima atmosfera de uma rodagem dos filmes de Pedro Almodóvar. Depende de muitas coisas, não apenas da qualidade das personagens. Há o sentido de família, e o maravilhoso prazer de nos deixarmos levar por alguém que nos transporta para o seu próprio mundo".Marisa ParedesChama-se Huma Rojo porque fuma ("huma") muito, como Bette Davies. E é actriz, num filme a elas dedicado - sobretudo, Gena Rowlands ("Noite de Estreia") Bette Davies ("Eva") e Romy Schneider ("O Importante é Amar") -, a elas e a todas as mulheres, intérpretes ou não, que fingem.Garcia Llorca disse que a Espanha era um país de grandes actrizes; Pedro Almodóvar diz que aprendeu tudo sobre a vida aos oito anos, na sua Mancha natal e machista de há mais de quatro décadas, ao olhar para o silêncio e para o fingimento das mulheres. Tinha de haver uma actriz em "Tudo Sobre a Minha Mãe". A primeira vez que a vemos, Huma, num enorme cartaz de teatro, não podemos deixar de pensar em outra personagem de actriz do cinema de Almodóvar, a Becky del Paramo de "Saltos Altos". "Mas não tem nada a ver", diz a intérprete de ambas, Marisa Paredes. "Temos o mesmo rosto - não posso mudar de cara, sou eu, também, para além de ser a personagem - mas não pensei nada em Becky em termos de inspiração. Becky é uma diva, também está dentro de mim mas fundamentalmente nasceu de Pedro. Agora, com Huma Rojo, ele inspirou-se em mim, devolveu-me a bola".Huma Rojo, sempre de vermelho, neurótica e tão "dependente da amabilidade dos desconhecidos" como a Blanche Dubois de "Um Eléctrico Chamado Desejo" que representa à noite no teatro, não é a Becky del Paramo de "Saltos Altos" também porque Pedro Almodóvar, cineasta, já não é o mesmo Pedro Almodóvar. E, não por acaso, Marisa Paredes esteve no filme que marcou essa mudança, que trouxe um acréscimo de nostalgia e de gravidade à obra do cineasta: "A Flor do Meu Segredo" (1995)."Alguém me perguntou em quem é que eu me tinha inspirado para Leo, a escritora de 'A Flor do Meu Segredo'. Inspirei-me em Pedro; essa escritora, para mim, era Pedro Almodóvar. 'A Flor do Meu Segredo' traça uma linha no auto-descobrimento de Pedro e no balanço que ele fez daquilo que tinha criado antes. O cansaço que sentia em relação a um momento pessoal da sua vida estava ali, posto em cinema. Não foi por acaso que nesse filme, pela primeira vez, ele mostrou a região onde tinha nascido e reconstituiu cenas que tinha vivido na infância. Por exemplo, a cena em que Leo chegava à sua aldeia para recuperar de uma tentativa de suicídio. ... nessa mesma cena, a personagem da minha mãe recitava-me um poema que a própria mãe de Pedro mil vezes lhe tinha recitado".É com Huma/Marisa Paredes que deixamos "Tudo Sobre a Minha Mãe". No último do filme, nos camarins de um teatro, ela está de costas e vira-se para as outras personagens - para nós, espectadores -, deixando em suspenso, antes da palavra "Fim": "Vêmo-nos mais tarde, não é verdade?". O que é que está nesse olhar e nessa suspensão?"Muitas coisas. Está, por exemplo, a nostalgia. Pedro dirigiu-me dizendo: 'Voltas-te, olhas, não sei exactamente como...'. Ou seja, estava a pedir: 'Dá-me coisas'. É um olhar que carrega muitas coisas. Creio que a essência do primeiro Almodóvar permanece, sempre. O que mudou foi o seu ponto de vista sobre determinadas coisas. Mas ele, fundamentalmente, é um cineasta dos sentimentos. Isso não mudou. Mas é verdade que a nostalgia - e ele nem sequer é uma pessoa muito nostálgica - se instala quando perdemos coisas na vida".E a concluir, Marisa Paredes, que já foi o "alter-ego" de Pedro Almodóvar, exerce o seu direito de pertença a uma família. "Se há algo que me diverte ao trabalhar com Pedro é a possibilidade de expressar todas as ambiguidades. E que os outros as possam ver também. É muito divertido e é verdade que durante as rodagens todos nós nos beijamos na boca, apalpamo-nos no rabo... Somos uma família, queremo-nos muito e é muito divertido. Às vezes, também, é um drama. Como em todas as famílias".Antonia San JuanSe as outras, sobretudo Marisa Paredes e Cecilia Roth, reivindicam a pertença ao clã Almodóvar, Antonia San Juan não só é uma entrada nova como mostra muito pudor em assumir a palavra "família". Mete-lhe medo."Tudo na vida decorre através de um processo. A familiaridade, como a amizade, é algo que se vai criando. Não se é amigo de alguém à primeira vista, senão estava-se a ser amigo de um fantasma. Posso dizer que em relação a Pedro Almodóvar o que se passou foi um bom encontro no início, e dia a dia comecei a sentir-me que pertencia a uma comunidade. Assusta-me a palavra 'família', porque implica uma proximidade demasiado grande. Há que ser mais asséptica. Prefiro dizer que trabalhámos juntos e que houve uma relação maravilhosa entre todos... mas uma família é pesado. Não, definitivamente não".E no entanto, foi para ela, e para a sua personagem, o travesti Agrado, que Almodóvar construiu um monólogo que resume a sua postura de cineasta. É como se fosse um "grande plano" dentro de um filme - podia ser o "close up" em que Gloria Swanson, em "O Crepúsculo dos Deuses", de Billy Wilder, desce as escadas, louca, a dizer: "I'm ready for my close up, mr. DeMille". Em "Tudo sobre a Minha Mãe" Agrado sobe a um palco, e começa: "Chamam-me Agrado porque tento sempre tornar a vida das outras pessoas mais agradável...", para continuar com a lista de operações cirúrgicas que lhe permitiram reconstruir-se como mulher e assim ficar mais autêntica: silicone nos lábios, nas maçãs do rosto, nas ancas e no rabo, olhos reconstruídos, amendoados, peito novo. "Ficamos mais autênticas quanto melhor correspondemos ao que sonhámos ser". Podia ser Pedro Almodóvar a falar no artifício do seu cinema."'Tudo Sobre a Minha Mãe" é uma reflexão do que se passa na sociedade, onde ninguém é masculino por ser homem nem feminino por ser mulher. Não podemos ignorar isso. Isso está sobretudo no papel de Agrado. O que é o feminino e o masculino? É algo que me parece enigmático, e que ultrapassa a dimensão genital".Antonia San Juan é uma figura conhecida dos "cabarets" de Madrid. Há poucos meses acabou uma temporada de um "one woman show", "Otras Mujeres", para o qual teve de memorizar 42 monólogos diferentes que utilizava de acordo com as reacções do público. "Escolhia um ou outro de acordo com a avaliação que fazia do público em cada momento que subia ao palco. O monólogo que faço no filme de Pedro, e que foi todo escrito por ele, poderia ter integrado esse espectáculo, podia ser um dos retratos de mulher que eu fazia, desde a obsessiva à excêntrica que se crê o centro do mundo, até à que passa o dia ao telefone com a amiga que, afinal, odeia, etc. Não me identifico com nenhum desses retratos mas todos eles têm um pouco de mim e posso ser qualquer um deles".Estar fora do universo Almodóvar, recusar a ideia de "família", dá-lhe uma lucidez implacável."Toda a obra de um artista evolui, e tudo é apenas a primeira pincelada de um quadro hipotético que ele só pinta aos 80 anos. Toda a gente enlouqueceu com 'Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón' [a primeira longa-metragem de Almodóvar, 1980], esse foi de facto um momento de ruptura profunda e um primeiro passo na movida madrilena. Que, obviamente, já não existe, mas Pedro vive de outras coisas para além disso, que têm a ver com a sua sensibilidade. Os filmes de Pedro são sempre tão esperados que haverá sempre alguém insatisfeito, desiludido. Porque cada filme de Pedro é sempre uma pequena revolução no seu próprio mundo".Agrado, a sua personagem, é a "outsider" que em quase todos os filmes de Almodóvar suspira pela integração. No caso de Agrado, ela ladra. Conta Antonia San Juan: "Tenho uma cadelita que é muito tímida. Encontrei-a na rua, abandonada, estava muito assustada, não sabia bem o lugar que ocupava, e ladrava como se perguntasse: 'Onde é que pertenço?'. Foi nesse ladrar que baseei o ladrar para Agrado".Penélope CruzA mais jovem estrela do cinema espanhol - depois de ter sido dirigida por nomes como Fernando Trueba ou Alejando Almenabar, chegou a Hollywood, onde trabalhou com Stephen Frears ("Terra Perdida") e onde vai trabalhar ao lado de Matt Damon, em "All the Pretty Horses", de Billy Bob Thornton -, Pedro Almodóvar vê-a como portadora de uma maternidade trágica. Em "Carne Trémula" (1997) Penélope Cruz morria no início do filme a dar à luz; em "Tudo Sobre a Minha Mãe" é a Irmã Rosa, com a vida organizada pela missão de fazer o bem aos outros mas com tudo o resto - ou seja, ela própria - em absoluto caos. Almodóvar volta a castigá-la com a maternidade: seropositiva, morre de novo ao dar à luz. "A minha mãe está preocupada com isso", brinca Penélope. "'Porque é que Almodóvar te dá um filho no filme mas depois tira-to ao fazer-te morrer?' Eu própria perguntei a Pedro: 'Porque é que me estás sempre a matar?'. 'Porquê?', respondeu-me ele, que já nem se lembrava do filme anterior. Por mim, gosto de dar à luz nos filmes, embora nunca tenha passado por essa experiência na vida. É uma espécie de treino".Penélope conta que Almodóvar escreveu a personagem de Irmã Rosa a pensar nela, embora nem ela nem as outras actrizes soubessem, inicialmente, o que iria ser "Tudo Sobre a Minha Mãe". "Um dia, já com o argumento escrito, fomos todas para casa de Pedro e ele leu o argumento. Fez a parte de todas as personagens, de todas nós. Foi assim que ficámos a saber a história do filme, que para mim é muito realista. Conheço muitas pessoas em situações semelhantes. Pedro é muito observador e não tem medo de olhar para descobrir as coisas". Como também, sendo um maníaco do argumento, não permitindo que o actor altere uma vírgula do que escreveu, está disponível para a surpresa."Quando estamos a filmar uma cena que ele percebe que não resulta, improvisa. Por exemplo, em 'Tudo Sobre a Minha Mãe' a cena em que Marisa, Cecilia, Agrado e eu estamos no sofá, não estava escrita. Apenas estava escrito que nos sentávamos para descansar mas não sabíamos o que íamos dizer. Pedro chegou, inventou todo o diálogo e em cinco minutos estávamos a filmar. Tínhamos trabalhado já com Pedro e como éramos todas mulheres, e estávamos à volta dele, criou-se uma relação muito especial. Pela história do filme - muitas situações dramáticas, tristes - podia ter sido duro. Mas foi uma rodagem muito leve e divertida".

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