Um mundo ficcional próprio
Um ano depois de ter sido criado o Prémio Literário José Saramago, o seu primeiro vencedor foi ontem conhecido: tem 34 anos, é licenciado em Filosofia e já escreveu ficção, poesia e teatro. Mas Paulo José Miranda confessou que não sabe se o livro que lhe valeu a distinção, "Natureza Morta", "tem ou não algum valor". O valor do prémio, esse, tem de certeza - cinco mil contos, o maior que se atribui às letras em Portugal.
O escritor, poeta e dramaturgo Paulo José Miranda, com a obra "Natureza Morta", é o vencedor da primeira edição do Prémio Literário José Saramago, uma iniciativa bienal instituída pela Fundação Círculo de Leitores. "Natureza Morta" foi publicado em Dezembro do ano passado pelas Edições Cotovia. O anúncio foi feito ontem por Guilhermina Gomes, presidente do júri e directora editorial do Círculo de Leitores (CL), no mesmo dia em que se completou um ano sobre a atribuição do Nobel da Literatura ao autor de "O Memorial do Convento".A cerimónia de entrega do prémio, no valor de cinco mil contos, decorreu na sede daquela instituição, em Lisboa. O valor do galardão institituído pela Fundação Círculo de Leitores é o maior em Portugal (o de Grande Romance da Associação Portuguesa de Escritores é de três mil contos). O Prémio Literário José Saramago - criado em Outubro de 1998 quando se soube da atribuição do galardão da Academia sueca ao autor de "Ensaio sobre a Cegueira" - pretende pôr em destaque obras em língua portuguesa, cuja primeira edição tenha sido publicada em qualquer país da lusofonia. Concorreram a esta primeira edição 21 obras, das quais doze foram portuguesas e nove brasileiras.José Saramago, recém-chegado de uma viagem entre Paris (ver texto na página ao lado) e Bilbau, entrou visivelmente bem-disposto na sala de conferências. Distribuiu cumprimentos e abraços por amigos e admiradores que ali se tinham dirigido, não só para felicitar Paulo José Miranda mas, também, para homenagear o primeiro Prémio Nobel de língua portuguesa."Obrigado, José Saramago, por tudo o que tem feito, cá dentro e lá fora." Foram as palavras emocionadas que Rui Beja, director do CL, dedicou ao Nobel da Literatura. Saramago, particularmente afável, foi direito ao assunto: "Pediram-me para vir aqui dizer umas palavras e esse é que tem sido o meu problema. Ao longo deste ano, tenho dito muitas palavras e escrito muito poucas." Em seguida, saudou o jovem premiado, desejando-lhe uma continuação feliz nas lides da escrita. E brincou com ele: "Há que dizer que este não é um prémio literário qualquer." Mais tarde, Saramago disse ao PÚBLICO que o que mais apreciou em "Natureza Morta" foi o facto de não se reconhecerem referências a outros autores: "É um livro muito bem escrito, que revela um mundo ficcional muito próprio." Licenciado em Filosofia, Paulo José Miranda, de 34 anos, estreou-se em 1997 com o livro de poemas "A Voz Que Nos Trai", tendo ganho, nesse mesmo ano, o Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes. Mas foi a "maturidade, rigor narrativo e capacidade efabuladora" que o júri - composto por oito elementos, de entre os quais Pilar del Rio, mulher de José Saramago, Vasco Graça Moura, o angolano Pepetela, a brasileira Nélida Piñon e Isabel Alegro de Magalhães - destacou em "Natureza Morta". Homem de poucas palavras, Paulo José Miranda agradeceu, timidamente, a distinção recebida: "Não sei dizer se o meu livro tem ou não algum valor. Para todos um bem haja. E obrigado."Apesar de já ter ganho o Prémio Teixeira de Pascoaes, Paulo José Miranda já esquecera que o seu editor, André Fernandes Jorge, propusera o seu livro para o Prémio Literário José Saramago. "Estava desde Junho em Istambul, a escrever um diário dos três últimos meses da vida de Antero de Quental, e já não me lembrava da data em que era anunciado o prémio", refere ao PÚBLICO.Ainda sem título, o livro que tem agora entre mãos faz parte do tríptico iniciado com "Um Prego no Coração", em torno de Cesário Verde" (Cotovia, Março de 1998) e "Natureza Morta", sobre a figura do compositor português João Domingos Bomtempo (Cotovia, Dezembro de 1998). Mais do que uma trilogia romanesca de recorte histórico, "é um projecto", explicou Paulo José Miranda, "que tenta olhar a relação dos seus autores com as suas próprias obras e as interrogações que elas nos levantam a nós próprios". "Aliás, não conheço nenhuma obra que não se interrogue sobre os problemas do seu próprio autor."Escrever, para Paulo José Miranda - que mais do que autores elege "Húmus", de Raul Brandão, e "Sinais de Fogo", de Jorge de Sena, como os seus livros de cabeceira -, é algo que implica sofrimento. "Tenho imensa dificuldade em compreender", disse ao PÚBLICO em Janeiro, "que alguém se esteja a dar a um trabalho que é oneroso, uma coisa em que se sofre imenso, para pôr numa gaveta. Quando se escreve é porque não se pode fazer outra coisa, escreve-se porque se tem de escrever."Num "dossier" que o suplemento Leituras do PÚBLICO lhe dedicou (28-11-1998), Jorge Martins Andrade, na recensão crítica a "Natureza Morta", escreveu que "a prosa de Paulo Miranda despreza artifícios de estilo, ela encena afinal um grande artifício, que é a sua própria dimensão ficcional". Uma dimensão que se expande, para além da ficção, na poesia e no teatro - com fios indissociáveis entre os três géneros.Rita Taborda Duarte sublinhou precisamente este aspecto quando recenseou "A Arma do Rosto" (no mesmo suplemento): "Aquilo que resiste, a unificar a multiplicidade dos textos, é afinal a expressão da íntima consciência de que a poesia é uma forma particular de vida, a lembrar, mais uma vez à sombra tutelar de Jorge de Sena, que se pode 'escrever como se escrever fosse respirar'.""O Corpo de Helena" - uma obra de teatro em que, curiosamente, os monólogos são em prosa e as intervenções do coro são em verso - revela, por sua vez, como notou Manuel João Gomes, "o drama existencial de marchar para a guerra por amor do amor de Helena". O nó essencial da escrita de Paulo José Miranda mantém-se. O jovem escritor sabe que "na vida não podemos voltar atrás emendar um verso um gesto/ há uma força que impele para o belo ainda que desconhecido/ prosseguindo página adiante tudo o que ficou para trás" (do poema "Amar o que ainda não veio", de "A Arma do Rosto").