Portugueses órfãos de Amália
A história de Amália começa por onde quisermos. Quando "eu já não for viva para dizer como foi", disse ela, "a minha história vai ser aquela que escolherem". Escolhemos esta: era uma vez uma mulher com uma voz do tamanho da alma. Acreditava que a música lhe vinha directamente de Deus e era a Deus que se entregava. Deu-se por inteiro ao seu destino de ser a alma colectiva portuguesa. Morreu ontem, aos 79 anos, a menina que vendia fruta em Alcântara e conquistou primeiro Portugal, depois o mundo. O funeral de Amália Rodrigues é amanhã, para o cemitério dos Prazeres.
"Amália, Amália, Amália." As lágrimas misturam-se com as palmas quando o carro funerário chega à Basílica da Estrela, pouco antes das seis da tarde. "Estás aqui Amália", grita um homem enquanto se ajoelha e benze. Há lenços brancos à volta. Alice Madeira, de 75 anos, veio do Cacém e está à porta da igreja com uma fotografia na mão, em que Amália está ao seu lado. "Foi num dia em que ela fazia anos e em que fui a sua casa. Andámos as duas na escola, em Alcântara. Mais tarde, quando ela morava na Rua de S. Bernardo, punha-me à espera que ela saísse. Queria ser sua criada. Não fui, paciência, mas ficámos amigas", diz Alice Madeira emocionada. "Já hoje chorei muito", desabafa.À espera do cortejo fúnebre, não está propriamente uma multidão - como seria de esperar. Mas os que foram até à Estrela, para se despedirem da fadista, não arredam pé até Amália chegar - como a Maria Alice Dias, de nove anos. "Gostava muito da Amália, do que ela cantava, por isso estou aqui."O funeral, que se realizará sexta-feira de manhã - após uma missa de corpo presente na Basílica da Estrela pelas 10h, e que sairá para o Cemitério dos Prazeres - terá honras de Estado, foi ontem anunciado ao final da tarde pela Presidência do Conselho de Ministros, que decretou igualmente luto nacional de três dias, com bandeira a meia haste em todos os edifícios públicos. "Um dia que morra a dona Amália, isto vai ser o fim do mundo, esta Lisboa", costumava dizer Arminda Pinheiro de Abreu, de 77 anos, ex-costureira em vários teatros de Lisboa. "Pus na minha ideia que estava aqui um mar de gente." Em frente do 193 da Rua de S. Bento - a casa de Amália, pintada de amarelo torrado com vasos de flores silvestres nas varandas e um pano branco a esvoaçar por Timor, numa das janelas - o número de admiradores vai aumentando ao longo da tarde. Quando chega a hora do carro funerário deixar a casa em direcção à Basílica da Estrela, quase às 17h, já várias centenas de pessoas enchem a rua, gritando por Amália, a chorar, acenando com lenços brancos, saudando-a com estrondosas salvas de palmas. Mulheres gordas de chinelos e avental, homens de gravata preta e óculos escuros, velhos de boné e lenços nas mãos, bem conhecedores das "vidas" do fado. Arminda Pinheiro de Abreu está no meio, de mão no peito. "É uma dor, assim uma coisa que não me deixa engolir, como um bocado de pão que não passa". Lembra-se bem do dia em que viu Amália pela primeira vez. Foi há 38 anos, no Coliseu. "Nunca falei com ela mas cumprimentei-a muitas vezes... Muitas vezes vinha comer no restaurante aqui em frente só para ver se a via à janela... nunca a vi". Em Alcântara, onde Amália cresceu, a Tia Elvirinha, como é conhecida, lembra-se de quando vendia fruta na doca com a amiga. "Tínhamos as duas 12 anos. Íamos para a Porta da Fábrica do Açúcar, junto à Cozinha Económica. Ela vendia fruta da boa, na passagem de nível. À hora de almoço, lavávamos os pés uma à outra - a poeira era tanta que ficávamos com os pés pretos - e à tarde íamos para a Pimenteira, onde lavávamos a roupa."À distância, Tia Elvirinha recorda: "Pessoa mais simples do que ela não podia haver. Falávamos muito da venda, da nossa vida. Havia muita miséria. Mas sempre tive a certeza que ela chegaria longe. Tinha uma cabeça que dava para tudo. Espalhou Portugal pelo Mundo. Amália é mais do que a Madragoa, Lisboa ou Portugal - é o Mundo."Das casas, das tabernas ainda vazias da Madragoa - o bairro a que a fadista está mais ligada - ecoavam os fados de Amália na rádio. As ruelas estão desertas. À esquina da Calçada do Castelo do Picão, Sebastião Tavares, 57 anos, ainda não quer acreditar: "Sabe, é que eu cantei numa Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios, onde ela também cantou." Ainda hoje se lembra do que ela lhe disse: "'Estás um bocado tremido, mas mete-te à vontade.' Acho que não me saí mal. Cantei um fado do Maurício."Na Travessa dos Ingleses vive, há 79 anos, José Inácio Santos. Conheceu-a no entreposto de Santos ou de Alcântara. Está triste, mas é com orgulho que confessa, com a sua voz rouca, por causa do amplificador de voz que tem que utilizar desde que foi operado à garganta, que cantou com ela. "Um dia engataram a gente para cantar, mas já não me lembro do fado, isso não. Ela cantava de uma maneira... mas nunca me passou pela cabeça que ela chegasse onde chegou."Na Rua Vicente Borga, onde se fazem as festas da Madragoa, vive Palmira Andrade. Com 88 anos, recorda-se de Amália, quando ela ia cantar, ao Convento das Bernardas. "Ela e a Hermínia." Mais tarde, nos Santos Populares, e sempre que fadista aparecia, não perdia nenhuma oportunidade para a ouvir. "Era muito simpática e ajudava os mais pobres.""Você não tem angulas, eu não ponho aí os pés." Era assim que Amália interpelava António Oliveira, o dono do restaurante Varina da Madragoa, quando queria ir lá jantar. António Oliveira tinha-a conhecido em Luanda, em 1967, quando era porteiro do Cinema Aviz. Na falta de angulas - as crias das enguias - a fadista optava pelas pataniscas de bacalhau regadas com sangria. "Ela não era muito de comezainas, era mais de debicar." Na Basílica da Estrela, a partir das 19h, com o corpo de Amália em câmara ardente, os repórteres de imagem empoleirados e os jornalistas de um lado para o outro de microfone na mão, vão entrando os seus amigos, admiradores e familiares. Jorge Sampaio, João Soares, Cavaco Silva, Manuel Maria Carrilho, João Braga, Lia Gama, Raúl Indipwo, perfilam-se junto ao caixão. Mas na morte de Amália, que não deixando filhos deixou um país de orfãos, todos os que por ela fazem luto são anónimos. "Era uma boa alma", "está tão bonita, parece que está a dormir", sussurram-se palavras de consolo. Afinal, "foi melhor assim", "teve uma morte santa". E Eusébio, o único português que partilhava com ela uma humilde simplicidade e uma popularidade universal, tapou o rosto com um lenço.*com Paula Torres de Carvalho e Rui Catalão