Intimismo e esplendor
Foi numa Igreja do Loreto a rebentar pelas costuras que Andreas Scholl e a Akademie für Alte Musik se apresentaram na segunda-feira à noite. O êxito do recital do ano passado, com árias de Haendel, na Sociedade de Geografia, repetiu-se e multiplicou-se. Se durante a sua primeira passagem por Lisboa nem todos captaram a sua dimensão e muitos desconheciam a nova estrela da música barroca, desta vez foi a consagração. No espaço de tempo que medeia a segunda vinda de Scholl a Lisboa nasceram novos sucessos, o contratenor estreou-se na ópera e o público português foi tendo acesso a cada vez mais informação acerca daquele que é considerado uma das grandes revelações da década. Todos quiseram comprovar as qualidades de Scholl "in loco" e ninguém parece ter saído decepcionado. O terceiro concerto das Jornadas Gulbenkian de Música Antiga não foi perfeito (a perfeição não existe), mas foi um momento glorioso. A euforia justifica-se. Na área restrita das vozes de contratenor Scholl tem um timbre único, redondo, encorpado e uniforme, que lhe permite realizar deslumbrantes nuances de colorido, uma surpreendente facilidade técnica, uma dicção impecável, uma fabulosa inteligência interpretativa. Cada palavra, cada frase, cada linha melódica adquire a inflexão adequada, ganha em significado, deixa-nos suspensos no tempo, faz-nos desejar que a música se prolongue eternamente. Na cantata "Vergnügte Ruh, beliebte Seelenlust" (Paz jubilosa, ânimo ditoso), de J. S. Bach, Scholl mostrou-nos de forma tocante o drama e o desespero do crente perante os pecados do mundo, com recitativos de grande expressividade dramática e árias plenas de pujante vivacidade rítmica. No belíssimo "Stabat Mater", de Vivaldi, uma serena melancolia perante a dor da "Mater Dolorosa", de forma talvez menos veemente daquela que se encontra registada naquele que foi o seu primeiro grande êxito discográfico. As intervenções do órgão na segunda ária da cantata nem sempre tiveram a desejada precisão, mas a repetição do trecho como "encore" devolveu-lhe a sua poderosa força.O maior problema da actuação de Scholl foi que as duas obras que interpretou souberam a pouco. À semelhança do ano passado e de várias gravações, a intervenção do contratenor foi partilhada em partes iguais com a notável Akademie für Alte Musik, que se apresentou mais uma vez sem maestro, como é da sua tradição. A sua actuação não teve a perfeição imaculada do ano anterior, mas foi igualmente excitante. A Suite nº1 em Dó Maior, de Bach, foi um verdadeiro convite à dança (com uma impagável graciosidade nos "Minuets" e nos "Passepieds") e o excelente contributo dos oboés e o Concerto para Arcos em Sol menor, de Vivaldi, soou pleno de brilho.Mas seria injusto que Andreas Scholl e a Akademie für Alte Musik ofuscassem os dois primeiros concertos das jornadas. Christophe Rousset e Les Talens Lyriques revelaram o intimismo e a monumentalidade da música sacra do barroco francês na sexta-feira e no sábado, na Igreja da Graça, através de algumas das suas mais belas obras. O concerto de abertura foi dedicado a François Couperin, com o "Motet pour le Jour de Pâques", o "Magnificat" e as extraordinárias "Leçons de Ténèbres". Destinadas a um convento feminino, as "Leçons de Ténèbres" são quase sempre interpretadas por contratenores. Neste concerto foram devolvidas à sua tessitura vocal original (dois sopranos) com Valérie Gabail e Monique Zanetti. Uma interpretação digna do manancial de expressividade que a obra respira, mas que não chegou a atingir a genialidade de Gérard Lesne, quando este cantou a mesma obra nas jornadas de há quatro anos.No sábado foi a vez da música de Marc-Antoine Charpentier e Louis-Nicolas Clérambault marcar a sua presença, agora com os Talens Lyriques em formação mais alargada. A elevação a cinco "Trasfige dulcissime Jesu", de Charpentier, foi um dos momentos mais belos da noite, assim como o comovente coro que evoca as lágrimas de São Pedro na oratória "Le Reniement de Saint Pierre". Pena que a fusão das vozes e a depuração expressiva aqui demonstradas não se mantivessem com a mesma intensidade ao longo de todo o concerto. Da segunda parte, dedicada a Clérambault, destacam-se as intervenções instrumentais, sobretudo o violino solo em "Remords calmés", a Sonata "L'Anonima" e a interessante secção final "Histoire de la Femme Adultére". O percurso através da Música Sacra na Europa Mediterrânica continua hoje, às 21h, na igreja de São Vicente de Fora, com um programa dedicado à música ibérica e italiana dos séculos XVI e XVII. São intérpretes a soprano Rosita Frisani, o baixo Roberto Abbondanza e o organista Sergio Vartolo.