A voz a caminho das nuvens
Tem dois metros de altura e uma voz de ouro. Pensou em ser padre ou militar mas estava escrito que havia de ser cantor. Veste a pele dos grandes heróis da ópera barroca, mas o seu hobby é a música pop. O contratenor Andreas Scholl é um fenómeno de popularidade. Pela segunda vez nas Jornadas Gulbenkian de Música Antiga, em Lisboa, voltou a causar furor.
Quem passasse na segunda-feira à noite pelo Chiado, em Lisboa, deparava com uma multidão que tentava a todo o custo penetrar na Igreja do Loreto. Longas filas de ambos os lados da escadaria, pessoas ansiosas à procura de um bilhete. De repente distingue-se um vulto de elevada estatura (mais de dois metros?) no meio da massa anónima. O contratenor Andreas Scholl, no fundo a razão de toda esta euforia, ficou preso no meio do "engarrafamento" da entrada para o seu próprio concerto! Encontrou a porta dos artistas fechada. "Porque é que não fura?", perguntou alguém a seu lado, reconhecendo-o, apesar do boné, e do impermeável. "É indelicado passar à frente das pessoas", respondeu divertido. Só dez minutos depois conseguiu abrir passagem.Pela segunda vez em Lisboa, com a Akademie für Alte Musik, o mais famoso contratenor da actualidade veio interpretar Bach e Vivaldi, dois dos seus compositores preferidos, que lhe valeram alguns dos seus maiores êxitos discográficos. Depois de ter acomodado todas as pessoas com bilhete, a Gulbenkian abriu as portas a todos quantos cabiam. No final, a Igreja do Loreto veio abaixo com aplausos e organizou-se uma nova fila. Desta vez para tentar obter um autógrafo. Quando Scholl apareceu, já tinha trocado o fato e gravata por jeans e boné. Dir-se-ia um jogador de basebol americano.ANDREAS SCHOLL - Foi a minha primeira actuação depois das férias. Uma boa resposta da assistência dá-nos confiança e energia para reiniciar o trabalho.Este é um processo simples para os cantores porque temos sempre um texto. No barroco a regra de ouro é "a música serve o texto". O mais importante é a mensagem. Quando canto estou a falar. Se o texto diz "Oh Jesus estás tão longe de mim" como na Cantata de Bach, há toda uma retórica musical usada pelo compositor para transmitir esta ideia. Na ópera o processo é o mesmo. Há uma personagem. Temos de descobrir quem é, o que sente quando canta determinada ária, se está triste, alegre ou furiosa... É como quando vamos ao médico e ele nos pergunta o que sentimos. É preciso analisar os sintomas. É um trabalho árduo, mas no final soa como se fosse uma coisa simples e natural. Há um processo intelectual, mas o resto tem de vir do coração.