Comandante militar em Díli foi "carcereiro" de portugueses
Há 23 anos um grupo de militares portugueses esteve dez meses prisioneiro dos indonésios em Timor. As recordações não são boas. Um dos detidos, o então major Nascimento Viçoso relatou à PÚBLICA a sua experiência, particularmente no que respeita ao relacionamento com os militares ao serviço do regime de Jacarta - "a sua noção de honra, compromisso, acordo, boa-fé e cooperação nada têm a ver com os nossos conceitos". São "imprevisíveis", "frios" e "calculistas". Viçoso conheceu o, na altura, tenente Kiki Syahnakri, hoje general e até há dias comandante militar de Timor-Leste. Deixou-lhe boa impressão. Só que, sublinha, entretanto passaram-se 23 anos...
O general Kiki Syahnakri, até há dias comandante das forças indonésias em Timor-Leste, é um "velho conhecido" de alguns portugueses. Em 1975/76, então jovem tenente, Syahnakri comandava o posto militar de Atapupo, localidade do Timor indonésio onde estiveram presos durante dez meses 23 militares portugueses, "apanhados" pela guerra civil timorense. Hoje coronel na reforma, António Nascimento Viçoso era, à data, major e o militar mais graduado do grupo de prisioneiros. Em declarações à PÚBLICA (as primeiras que faz em 23 anos sobre aquela terrível experiência), recorda que Kiki Syahnakri "foi sempre cordial" e, até, "sensível" a algumas das queixas apresentadas pelos militares portugueses detidos."Os nossos contactos resumiram-se, no entanto, a uma dúzia de vezes, quando nos visitava na velha missão em Atapupo e, posteriormente, também, em Atambua, no último mês do nosso cativeiro. Foi sempre cordial e nada tenho a recriminar-lhe relativamente ao seu comportamento para connosco. De certo modo, penso que contribuiu para algumas melhorias das nossas condições de instalação", considera, recordando um episódio sucedido quando do regresso a Portugal - "Funcionários do serviço de alfândega da Indonésia revistaram os nossos sacos de bagagem e ilegalmente começaram a confiscar o pouco dinheiro estrangeiro que iam detectando; valeu-nos nessa altura o tenente Kiki, a quem apelámos, e que, de imediato, obrigou os funcionários a devolverem o dinheiro".Nascimento Viçoso faz, no entanto, questão de sublinhar que "entretanto se passaram 23 anos", pelo que a impressão que reteve de Syahnakri "hoje, já não tem qualquer significado". Até porque a sua experiência, primeiro como comandante de uma unidade que mantinha contactos frequentes com os indonésios e, depois, como seu prisioneiro, leva-o a não ter em boa conta os militares de Jacarta, particularmente os da cúpula do exército."Culturalmente, as suas noções de honra, compromisso, acordo, boa fé e cooperação nada têm a ver com os nossos conceitos. Só o ódio e a vingança 'lavam' uma humilhação, e isso suplanta tudo e justifica todos os meios", considera, acrescentando não ter sido surpreendido pela"actuação dos militares indonésios em Timor no pós-referendo" e que nada o "surpreenderá no futuro, porque, com eles, tudo é possível" - "o seu comportamento e atitudes são imprevisíveis e a maior parte das vezes o que parece não é, tudo dependendo dos objectivos que têm, e dos caminhos que querem seguir para os atingir".Nascimento Viçoso aponta o general Wiranto, ministro da Defesa e comandante chefe das forças armadas, como "oficial típico" do topo de carreira do exército indonésio."Frio, calculista e sinistro, pode planear e ordenar a eliminação de um povo, ao mesmo tempo que entoa a canção 'Feelings' com uma voz suave e um sorriso - diz que os militares indonésios vão para Timor-Leste para restabelecer a ordem e a segurança, quando se sabe que o que sucedeu foi precisamente o contrário. Afirma que os timorenses vão para a Indonésia para serem protegidos e por sua livre vontade, quando sabemos que isso também não é verdade", refere sobre os recentes acontecimentos no território timorense.O coronel António Nascimento Viçoso (que chegou a Timor em Abril de 1975 e foi comandar o Agrupamento de Cavalaria de Fronteira, sediado na localidade de Bobonaro), recusou sempre, tal como os outros militares do quadro seus companheiros de prisão, falar publicamente sobre a situação que viveu há 23 anos em Timor. Isto porque, como afirma, "nunca quis que qualquer declaração pudesse prejudicar, fosse de que forma fosse, o processo relativo àquele território".O coronel Viçoso, no que respeita às relações com as autoridades indonésias, "detectou" níveis de decisão e de controlo próprios de um regime ditatorial, sustentado pelos militares e pela polícia."Durante o período de mais ou menos quatro meses em que estive a desempenhar, dentro da normalidade, as funções de comandante da unidade de Bobonaro, estabeleci contactos com diferentes autoridades indonésias de Timor Ocidental, quer a nível estritamente militar, quer de âmbito social, em determinados dias festivos tradicionais. Em todos esses contactos, mesmo aqueles com carácter especificamente militar, as comitivas indonésias integravam sempre, para além dos comandantes militares locais, outros elementos da polícia, da administração pública, dos serviços de alfândega e dos serviços de informação (policia política)", recorda."As ilações a referir desses encontros, que a nossa própria e infortunada experiência posterior, como detidos, permitiu corroborar, é que o regime de força indonésio se apoia naquelas estruturas paralelas de poder, que mutuamente se vigiam e controlam, e em cujas cúpulas predominam os quadros javaneses, que dominam e colonizam as restantes ilhas e etnias"."Os contactos directos que mantive com as diferentes autoridades de Timor Ocidental, em especial as militares, a vários níveis, e o próprio Governador de Kupang, permitiram-me constatar que, de uma forma geral, o seu comportamento era afável e cordato".Posteriormente, no entanto, durante o período da detenção, o comportamento revelou-se radicalmente oposto, "mostrando a verdadeira face das autoridades indonésias".Os antes simpáticos e afáveis indonésios mudaram de atitude logo na fase inicial da detenção."Submeteram-nos ao preenchimento de inquéritos idênticos, apresentados por cada uma das organizações que mencionei; inviabilizarem qualquer tipo de contacto com o nosso comando no Atauro ou com a nossa embaixada em Jacarta; aqueles que anteriormente nos recebiam com cortesia, a "sorrisos", furtavam-se ao nosso contacto e alheavam-se da situação; ameaçaram-nos com a realização de julgamentos sumários e fuzilamentos, cuja execução pelos indonésios poderia ardilosamente ser atribuída aos refugiados timorenses; coagirem-nos a responder a sinistros interrogatórios individuais a que fomos submetidos no Kupang, por agentes dos serviços de informação"."Na fase seguinte, em que estivemos detidos em Atapupo, fomos uma única vez (por sinal, imediatamente após o nosso internamento forçado em território indonésio, em 25 de Setembro de 1975) contactados por um delegado do Comité Internacional da Cruz Vermelha, que nos prometeu diligenciar pela nossa libertação"."Foi essa a primeira e última vez em que, praticamente, nos nove meses seguintes de cativeiro em Atapupo, contactámos alguém que não fosse das forças militares ou policiais da Indonésia".Isolados no "fim do mundo", sem possibilidade de contactar fosse quem fosse, os 23 militares portugueses limitavam-se a esperar, sem saber que movimentações diplomáticas se faziam para os retirar da sua situação de reféns. E esperavam em condições deploráveis.Tinham por tecto "uma velha igreja em ruínas, já parcialmente destelhada, numa antiga missão em estado de abandono, situada num pequeno vale, encaixado entre elevações densamente arborizadas", recorda Nascimento Viçoso."Dormíamos sobre tábuas espalhadas ao longo do chão de cimento da igreja e a alimentação resumia-se a um naco de pão amanteigado e café, durante a manhã, e quase exclusivamente arroz com minúsculos bocados de carne e gordura, nas duas restantes refeições diárias, tudo em quantidades diminutas"."Permanecemos nestas condições durante cerca de nove meses, daí resultando, nalguns casos, graves sequelas de natureza psicológica e de instabilidade emocional e frequentes problemas de natureza física, de subnutrição e de ordem sanitária".O último mês de detenção decorreu em Atambua, "para onde inesperadamente nos conduziram, verificando-se uma melhoria significativa no tipo de tratamento, nas condições de alojamento e alimentação e numa maior abertura na liberdade de movimentos"."Desconhecendo por completo o que se passava, acabámos por ser surpreendidos, alguns dias depois, pela visita de uma delegação de oficiais das Forças Armadas portuguesas que se deslocara à Indonésia para 'negociar' o nosso repatriamento."Estava assim explicado o mistério da mudança e do autêntico 'programa de engorda' a que parecia estarmos a ser submetidos, provavelmente para camuflar os efeitos dos anteriores nove meses de detenção em Atapupo".De acordo com Nascimento Viçoso, "mais uma vez as autoridades indonésias confirmavam o seu cinismo e astúcia, ao mostrarem-nos de novo aos 'olhos do mundo' em condições mais dignas de tratamento".O hoje coronel do Exército português afirma que durante todo o período de prisão não foram infligidos aos detidos "qualquer tipo de maus tratos físicos", mas que os militares foram sujeitos "a diversas formas de coacção moral e psicológica", citando nomeadamente asameaças de acções de retaliação, "quando as forças indonésias sofriam reveses nas operações que levavam a cabo no interior do território de Timor-Leste" ou a total privação de contacto com o exterior."Afirmavam cinicamente e com o maior desplante, que estávamos ali retidos sem o conhecimento de ninguém. Para o mundo continuávamos sob controlo da força partidária que se tinha acolhido à sua protecção e aderido à sua política de integração de Timor-Leste, até que Portugal reconhecesse oficialmente a legitimidade da sua posição", diz, recordando que "intencionalmente faziam assim crer que não tinham nada a ver com a nossa detenção pelo que nem éramos prisioneiros de guerra, nem refugiados, e, por isso, não tínhamos qualquer estatuto que nos protegesse"."Maquiavelicamente, impossibilitavam a intervenção de qualquer comissão, instituição ou organização de assistência humanitária ou de defesa de direitos humanos".Passados 23 anos, Nascimento Viçoso não tem dúvidas: "Posso afirmarque a nossa dignidade como pessoas e como militares foi seriamente ofendida, e que para os indonésios não há códigos de honra nem respeito por acordos e convenções internacionais".