Torneira aberta

Das duas uma: ou os artistas cubanos já se deixaram de escrúpulos ideológicos e está a facturar em grande, ou há muito boa gente no mundo capitalista que os está a explorar a toda a força. Certo é que desde o sucesso de "Buena Vista Social Club", em 1996, o volume de edições de música popular cubana não pára de crescer. A avalanche editorial agrava-se localmente com a estreia do documentário de Wim Wenders sobre o "Buena Vista" e, tirando o Brasil, não haverá hoje estante tão repleta quanto a de Cuba na secção world das lojas de discos. Na manifesta impossibilidade de dar conta de tudo, falamos do que vamos conseguindo ouvir.

O "Buena Vista" era no essencial um supergrupo de avós cubanos sob a produção de Ry Cooder. Ora houve outra reunião de consagrados da ilha, mas como uma média de idades mais baixa, em 1978. O projecto chamou-se Estrellas de Areito e nele figuraram o trompetista Arturo Sandoval, o pianista Rubén González, parte do grupo Irakere, assim como com glórias das décadas de 40 e 50, como o trompetista Félix Chappotín(então com 70 anos de idade), o violinista Enrique Jorrín e o flautista Richard Eguës da Orquestra Aragón, todos sob a batuta do trombonista, arranjador e produtor Juan Pablo Torres. Apesar da excelência dos nomes em jogo e do carácter inovador do projecto, os registos que então efecturam foram prensados em pequenas edições de cinco LP e cassetes, que quase ninguém comprou na ilha. Por associação de ideias, a mesma World Circuit que lançou "Buena Vista", relançou no ano passado uma compilação dessas gravações históricas sob a designação de "Los Heroes".Surge agora "Cuban All Stars", licenciado pelos famosos estúdios Egrem de Havana, que documenta a segunda reunião do colectivo, em 1981. Quem vem na capa desta feita é Rubén González(com uma pequena foto do grupo nas costas), o que fará algum sentido artístico pois ao pianista se deve a produção destas sessões, mas sobretudo se justifica por razões de marketing, quando se trata de um dos nomes mais sonantes do "Buena Vista". Esta colecção de sete temas não é tão febril e orgíaca quanto o primeiro material de "Los Heroes", mas o que perde em espontaneidade ganha em termos de disciplina de complexidade, segundo um modelo de fusão de várias formações cubanas convencionais, incluindo charangas(dominadas por uma flauta e dois violinos), conjuntos(dominados por um tres e três trompetes), e big bands de jazz(Edenways, distri. Farol, 8). Outro dos nomes cintilantes em "Buena Vista" era Compay Segundo, aliás Francisco Repilado, um jovem de 91 anos de idade que gravou discos a maior parte da vida. Dado o êxito do álbum produzido por Cooder é inevitável que o seu imenso fundo de catálogo esteja a ser objecto de repescagens, como sucede com esta compilação simplesmente chamada "Compay Segundo" e também tirada dos arquivos da Egrem. Abre com o famoso "Chan-chan", mas numa versão antiga que não tem a magia nem a modernidade de "Buena Vista". O mesmo se verifica no resto do material que abarca um período que vai desde 1965, altura em que Segundo deixou de fazer parte dos Compadres, até ao final dos anos 80, quando foi recuperado por Eliades Ochoa e o Cuarteto Patria. Terá sido a fase menos feliz da sua carreira, pelo menos a maior parte destes registos redundam datados, além de pecarem por uma produção mediocre. A ausência de qualquer informação sobre as datas dos registos e os músicos intervenientes torna a edição ainda menos atractiva(Edenways, distri. Farol, 4).Para quem o disco produzido por Cooder e/ou o filme de Wenders aguçaram o apetite para a música cubana, as compilações da vários artistas podem constituir uma boa opção. Especialmente recomendável é "Cuba" da série de colectâneas da Putamayo, editora que talvez por se dirigir sobretudo ao mercado americano costuma ter melhores capas que recheios, mas que neste caso conseguiu um equilíbrio notável das duas coisas. A selecção abre com mais dois nomes chave do "Buena Vista", Ibrahim Ferrer num registo de improviso combustivo, e Eliades Ochoa num lamento campesino, onde sobressai a fluidez da sua guitarra emotiva. Segue-se um alinhamento que alterna formações instituídas na música cubana, como o Septeto Nacional de Ignacio Piñero, fundado há 70 anos, como bandas mais recentes e com ambições inovadoras, como os Mi Son, passando por grupos da geração intermédia, como os Sierra Maestra e os Irakere. A escolha de uma dezana de temas é criteriosa e suficientemente abarcante para dar uma imagem de conjunto da música cubana, e vem acompanhada de elucidativas notas biográficas(Putamayo, distri. Strauss, 8). Outra colectânea que satisfaz como introdução aos clássicos cubanos é "Tradición de Cuba", que se concentra no género maior da música da ilha, o son, e o ilustra com material de arquivo dos estúdios Egrem. A escolha revela bom gosto e o interesse maior reside em ressuscitar material antigo de nomes reabilitados directa ou indirectamente pelo "Buena Vista", como Los Compadres, o Cuarteto Patria e o Sexteto Habanero, à mistura com gente não menos talentosa, mas bastante mais esquecida, como Carlos Embale, Faustino Oramas e o Septeto Anacoana. Ao contrário da compilação da Putumayo e, pelos vistos, como é hábito na Edenways, a edição padece da mais completa ausência de informação sobre os artistas e as datas dos registos(Edenways, distri. Farol, 7).Claro que não é possível continuar por muito mais tempo a gravar artistas cubanos que deveriam estar num lar, nem reeditar-lhes eternamente os fundos de catálogo. Compreendendo a necessidade de apostar em novos talentos, José Da Silva - o empresário de Cesária, que no ano passado se lançou também nas edições de avós cubanos - aposta agora em duas novas vozes femininas. Leyanis Lopez, nascida em Guantánamo em 1971, é uma cantora ainda jovem, mas formada na ortodoxia das músicas tradicionais cubanas, representando em particular o som da parte oriental da ilha. A sua preferência vai para o imaginário e o som dos bailes e cabarets dos anos 50 animados por boleros e valsas, terreno de eleição para uma voz intimista e sentimental. São esses precisamente os géneros que mais frequentemente aborda em "Como La Mariposa", uma estreia auspiciosa, apenas enfraquecida por um par de incursões em terrenos de tempos mais acelerados, como a güarija chá e o son montuno, onde o fatalismo dá lugar à vulgaridade(Lusafrica, distri MVM, 7)O caso de Osdalgia é substancialmente diferente, quando esta cantora originária de Havana opta por se estrear em "La Culebra" sob a produção de José Luis Cortés, o lider da NG La Banda. Cortés é uma das estrelas da timbra, a alternativa cubana à salsa americana, que é preferida pelos jovens da ilha, mas fora dela está longe de competir com a tradição protagonizada por "Buena Vista". Não será "La Culebra" que irá subverter esta assimetria, quando se trata de um álbum que assenta num jogo mecânico de percussões aceleradas e riffs de sopros estridentes, aqui e ali pontuados por incursões na pop delicodoce e no rap. A própria Osdalgia é o género de cantora com um grande vozeirão, mas carente do tão apreciado "filin"(feeling), que faz a glória dos cantores cubanos da velha guarda(Lusáfrica, distri. MVM, 5). Luís Maio

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