"Devemos muito a Raisa"
A antiga União Soviética encheu ontem as ruas de Moscovo no último adeus a Raisa Gorbatchov. Criticaram-na em vida mas agora choram a sua morte. "Ela faz lembrar uma das belas personagens da literatura russa". É um luto que corre paralelo à tensão na Tchetchénia. Moscovo continua a bombardear a república separatista mas garante que não a vai invadir.
Milhares de russos passaram ontem pela Sala de Cerimónias da Fundação da Cultura da Rússia, em Moscovo, para prestarem a última homenagem à primeira dama soviética Raisa Gorbatchova. Ainda as portas da Fundação estavam fechadas, já centenas de pessoas se organizavam numa longa fila para ver pela última vez Raisa Maximovna, gente de diferentes idades, mais mulheres do que homens, poucos jovens, num mar de cravos vermelhos e lírios brancos, um panorama a suscitar uma pergunta incontornável: "Então Raisa Gorbatchov não era invejada, até odiada, pelas suas concidadãs por causa dos seus vestidos modernos e caros, bem como pelo seu protagonismo político?"Uma jornalista russa que olha atónita para tudo tenta responder mas não consegue. "Quando Gorbatchov estava no poder, o povo não gostava dela. Não tenho uma explicação para a presença de tantos russos", diz ao PÚBLICO. Uma das explicações prováveis chega de um jovem. "Devemos muito a Raisa Maximova. O marido foi o impulsionador de reformas profundas, mas ela ajudou-o nessa tarefa titânica. Não erro se disser que morreu uma grande estadista, uma mulher profundamente culta, o que era muito raro entre os dirigentes da União Soviética. É a eles que devo a minha actual situação".Ainda não tínhamos terminado a pergunta sobre a impopularidade de Raisa Gorbatchov no passado, quando uma mulher se junta à conversa. É Antonina e veio da Ucrânia para prestar homenagem à primeira dama. "Há quinze anos, a minha filha adoeceu gravemente. Corri muitos corredores à procura de ajuda e só ela me recebeu; salvou a minha filha. Era uma alma bondosa e aberta", diz, com a voz embargada pela emoção. Um grupo de enfermeiros e médicos transporta uma grande coroa de flores com as palavras: "Homenagem do Hospital Pediátrico de Moscovo a Raisa Gorbatchov". A instituição recebeu sempre muito apoio da esposa do antigo Presidente soviético. Raisa reuniu dinheiro e medicamentos para esse hospital. Visitava-o frequentemente e dedicava especial atenção às crianças com leucemia. "Ajudou muitas com essa doença, mas a medicina foi incapaz de a salvar", diz um médico. Mikhail, director de uma galeria de pintura, recorda: "Só com Gorbatchov pudemos criar livremente. A sua política deve muito a Raisa Maximovna, uma mulher extremamente culta. Faz lembrar uma das belas personagens da literatura russa". Quando o marido era Presidente, a mulher dirigiu a Fundação da Cultura da Rússia e realizou uma obra notável no apoio à cultura do país. As pessoas entram recolhidas numa sala pouco iluminada, no centro da qual está a urna com Raisa Gorbatchov. À volta, centenas de flores e coroas. Mas as atenções concentram-se no marido, sentado num dos lados da urna, acompanhado da filha, cunhada e netas. O seu rosto cansado e abatido faz lembrar o Gorbatchov que regressou a Moscovo depois do golpe de Agosto de 1991.Só que desta vez o reformador soviético não está só. Muitos dos seus companheiros da perestroika estão presentes: Alexandre Iakovlev, o teórico das reformas na URSS; Vadim Medvedev, antigo membro do Bureau Político do PCUS; Karen Chakhnazarov, ex-conselheiro do Presidente Soviético; Iegor Iakovlev, o pai do jornalismo soviético livre; Evgueni Primakov, que dirigiu uma das câmaras do Soviete Supremo; Iegor Stroiev, antigo membro do Bureau Político do PCUS e actual presidente do Conselho da Federação.Boris Ieltsin não veio despedir-se, dizem que o seu estado de saúde se agravou nos últimos tempos, mas os seus sentimentos foram apresentados pela sua esposa, Naína Ieltsina. Vladimir Putin, primeiro-ministro russo, encontrou tempo para despedir-se de Raisa.A fila de pessoas parece não ter fim e o tempo passa depressa. Por isso, Nikita Mikhalkov, conhecido realizador de cinema e director da Fundação de Cultura da Rússia, vem à rua para dizer que as portas não serão encerradas às 16 horas, como estava previsto, mas às 18, para que todos possam chorar a perda desta mulher. [Enquanto os russo choram a morte da primeira dama soviética, a tensão persiste no Cáucaso do Norte. Moscovo negou ontem, pela voz do ministro do Interior, Igor Zubov, que tencione invadir de novo a Tchetchénia. Fortes contingentes militares russos, de milhares de homens, estão a concentrar-se há dias na fronteira entre a Rússia e a sua antiga república, enquanto aviões bombardeiam bases guerrilheiras islamistas no território. Na ordem interna, o Supremo Tribunal decidiu ontem que o partido do Presidente da Câmara de Moscovo, Yuri Luzkhov, pode concorrer às eleições parlamentares de Dezembro. Os magistrados rejeitaram assim a queixa apresentada por um cidadão privado, segundo o qual a formação "A Pátria é Toda a Rússia", parte de um bloco centrista, não podia concorrer por se ter registado fora de tempo".]