O dinheiro da Figueira da Foz
No mesmo dia (sábado) em que Emídio Guerreiro era homenageado pelos seus cem anos de "combatente da liberdade" em Guimarães, cidade natal, João Soares, em Alpiarça, propunha uma saudação ao "revolucionário" Palma Inácio. Só que os dois antigos dirigentes da LUAR polemizam sobre os dinheiros do assalto à Figueira da Foz e acusam-se de ligações à PIDE.
"O que move o Palma?", interpela Clarinda Veiga Pires, agora com 58 anos, que em Argel e Paris participou nas actividades da oposição portuguesa ao salazarismo e deu guarida a Palma Inácio quando, em 1973, a polícia francesa o colocou sob residência vigiada. Clarinda não aceita que Palma Inácio, o homem que liderou algumas das acções revolucionárias que mais contrariaram o regime de Salazar, insinue que Emídio Guerreiro, o "capitão Hélio" da resistência francesa ao nazismo, "meteu a PIDE na LUAR". Guerreiro festejou o centenáro este mês, Palma Inácio tem 77 anos. Amigos dos dois antigos antifascistas interrogam-se sobre as razões do reacender de uma polémica que julgavam ter sido encerrada com a declaração feita por Palma Inácio no 1º Juízo Correccional de Lisboa e que constituiu sentença proferida por este em 11 de Dezembro de 1992. Aí se dizia: "Após ter tomado conhecimento das contas da LUAR apresentadas no decurso da audiência de discussão e julgamento, Hermínio da Palma Inácio declara ter verificado a exactidão e honestidade da administração da única quantia de 109.439,39 dólares que por si e seus companheiros da Operação Mondego foi confiada ao Conselho Superior da LUAR, declara consequentemente ser destituído de fundamento a afirmação por si proferida de que o Prof. Emídio Guerreiro tinha tido à sua guarda pessoal e desviado qualquer quantia de que só era responsável o Conselho Superior da LUAR."Como reparação moral devida ao Prof. Emídio Guerreiro compromete-se a fazer publicar esta declaração nos jornais que a este caso se referiram: "Jornal de Notícias" do Porto, os dois semanários de Guimarães - "Povo de Guimarães" e "Notícias de Guimarães" - "O Diabo", PÚBLICO, O "Independente", "A Capital", "Diário de Notícias", "Expresso" e "Tal e Qual"".Este compromisso de honra, soube-se agora, nunca foi cumprido. Em 1994, Palma Inácio alegou indigência junto do 15º Juízo Cível de Lisboa para se eximir à sua publicação. A controvérsia que opõe Emídio Guerreiro e Palma Inácio tem quase 32 anos. Remonta a Dezembro de 1967, quando um tribunal parisiense devolveu Palma à liberdade, depois de ter reconhecido a motivação política do assalto à filial do Banco de Portugal, na Figueira da Foz. No dia 17 de Maio de 1967, Palma Inácio liderara o assalto, com sucesso, de lá retirando 29.300 contos.Nos quatro meses em que Palma Inácio esteve detido em Paris, estalou uma polémica na direcção da LUAR (Liga de União e Acção Revolucionária) entre a "comissão política" e o "comando-geral militar". De um lado, estavam Emídio Guerreiro, José Augusto Seabra (actualmente embaixador em Bucareste), o escritor Fernando Echevarria, o investigador Helder Veiga Pires e o sargento da Marinha Mário Mateus, estes dois já falecidos. Do outro, estavam Camilo Mortágua, que participara no assalto ao paquete Santa Maria e é actualmente cooperante numa associação de desenvolvimento local no Alentejo, António Barracosa, actualmente causídico no Algarve, Luís Benvindo e Júlio Alves. O fundo da questão residia na liderança da organização revolucionária, sabendo-se que essa direcção significava igualmente a gestão dos fundos do assalto ao Banco de Portugal. Palma Inácio, contra a expectativa de Emídio Guerreiro, tomou o partido dos "operacionais". A LUAR foi criada no seguimento do assalto à Figueira da Foz, por iniciativa de Emídio Guerreiro, que discutira em tempos o projecto com Palma Inácio. A sua fundação foi precipitada pelo conhecimento do assalto e a sua divulgação foi feita nas páginas de "Le Monde", pelo jornalista Marcel Niedergang, precisamente para assegurar uma cobertura política ao grupo assaltante, como veio a acontecer. Dos 29.300 contos, só seis a sete mil contos tinham curso legal, pois as outras notas não tinham ainda sido postas em circulação e o Banco de Portugal emitiu de imediato um comunicado considerando-as retiradas do mercado. O grupo assaltante, desconhecendo obviamente este facto, levou o dinheiro consigo para Paris, à excepção de cerca de 11 mil contos, que ficaram à guarda de um dos elementos da organização em Guimarães, que a PIDE conseguiu deter passados poucos meses. Em Paris constataram que outros 11 mil contos estavam igualmente referenciados. Embora não tivessem curso legal, constituíam um elemento incriminador, que por isso devia estar escondido. Depois de ter passado por alguns abrigos de ocasião, acabou num palacete dos arredores de Paris, de que era mordomo Ernesto Castelo Branco, até então um oposicionista ao regime salazarista, que nas eleições de 1958 participara na comissão de Almada de apoio à candidatura de Humberto Delgado.Esta personagem tornou-se o elemento chave na actual polémica. É a ele que Palma Inácio alude quando em declarações ao "Tal & Qual" (10/9/99) diz que Emídio Guerreiro "meteu a PIDE na LUAR". "Magoa-me que ele seja mentiroso", diz Clarinda Veiga Pires, viúva de Helder Veiga Pires, que no "Conselho Superior", órgão supremo da LUAR, desempenhava o lugar de tesoureiro da LUAR. "Mente duplamente" - acrescenta. "Mente por omissão quando evita mencionar que no Conselho Superior estava o meu marido e o Mário Mateus [ambos falecidos]. Posso aceitar que o faça por deferência, porque o meu marido nunca o deixou cair. Mas nesse caso devia evitar mentir claramente quando insinua que foi o professor Guerreiro que trouxe o Ernesto Castelo Branco para a LUAR. Sabe perfeitamente que foi o Mário Mateus que o trouxe. Além disso, o Palma continuou a manter contactos com o Castelo Branco mesmo depois do professor ter cortado com este".Mário Mateus faleceu, mas no dia 2 de Maio de 1974, "na hora grande e exemplar em que o povo português recupera a liberdade perdida", como escreve, dirigiu uma carta a vários , senão a todos, dos seus antigos camaradas do "Conselho Superior" da LUAR, "para que ninguém, nem intenção inconfessável alguma, possa semear a discórdia entre aqueles que se bateram pela liberdade", tudo isto "por amor e respeito da verdade", assim afirma.Aí dá conta como entraram no "Conselho Superior" dois novos membros, numa tentativa de ultrapassar as tensões existentes, que paralisavam a organização. Foram eles João Paulo Santiago e o citado Castelo Branco, este trazido por ele, que o conhecia de Almada. Alude à natureza dessas tensões, que prenunciavam uma cisão, com ambos os lados a reclamar o nome da LUAR. Explica que "foi tentada uma operação de arbitragem", para a qual foi designado o coronel Pio, um lutador da guerra civil de Espanha, comandante de Emídio Guerreiro na frente de Barcelona, como já o fora antes na revolta do Porto de 3 de Fevereiro de 1927, contra a ditadura militar. Palma Inácio conhecera o coronel Pio durante o seu exílio no Brasil e fora este quem lhe aconselhara a encontrar-se com Emídio Guerreiro. A arbitragem "não foi coroada de êxito", porque a "atitude intransigente de Palma impediu toda a espécie de compromisso", diz Mateus, que termina de um modo quase pungente, "rendendo homenagem" ao "professor Guerreiro, pela coragem, pela tenacidade, pela inteireza de carácter e pela inteligência" com que "animou" a LUAR, "mau grado as circunstâncias".