Uma movida por Timor
Numa varanda fronteira à embaixada, três religiosas aplaudem. Estão, decididamente, contra os vizinhos. A Espanha política reagiu com solidariedade ao protesto. As palavras de ordem e os cânticos tiveram eco e apoio entre os espanhóis.
Vieram de autocarro ou automóvel, chegaram de comboio e de avião, e desaguaram, em protesto, na Calle Agastia. Frente aos seis andares da embaixada da Indonésia na capital espanhola, a delegação diplomática de Jacarta mais próxima de Portugal, relembraram massacres e pediram uma força multinacional da ONU. Madrid, que há muito já esquecera causas, voltou na tarde de ontem aos tempos da "movida" solidária."O Alberto João Jardim devia estar aqui a ver o povo", grita Rui Batalha. "Ponha o meu nome, se faz favor, ponha", diz o algarvio que chegou de autocarro já passava do meio da tarde às "calles" de Madrid após ter saído bem cedo de Faro. Batalha, antigo subchefe da polícia da Quarteira, uma fita negra na testa, lembra um samurai. Acompanha as palavras de ordem com gestos largos, mas cerra os punhos com determinação quando, como ocorreu um sem-número de vezes, a multidão grita: "Assassinos, assassinos". Numa varanda fronteira à embaixada da Indonésia, três religiosas aplaudem. Estão, decididamente contra os vizinhos e com amabilidade permitem que gente nova encontre nos muros da sua casa um "camarote" para o protesto. "A culpa é vossa", volta a gritar a multidão, apontando para a representação diplomática de Jacarta.Os sete mil manifestantes calculados pela organização ganharam as "calles" madrilenas. Ontem, de manhã, bem cedo, os lisboetas Felipe Gonçalves e Rodolfo Valentim, de respectivamente 26 e 25 anos, estavam a escassas centenas de metros da embaixada. O pequeno Citroën ostentava uma enorme bandeira nacional. Felipe e Rodolfo descansavam. "Viemos ontem, passámos a noite a colar cartazes na Arturo Soria e na Castellana, dormimos no carro". Felipe, estudante de Arquitectura, pouco tempo teve para admirar fachadas: a julgar pelos incontáveis "posters", faixas e setas bem colocados nas imediações do cenário de protesto, teve uma frenética noite de colagens."Viemos ontem [sábado]de manhã, mantivemos diversos contactos com meios de comunicação para organizar tudo", adianta Suzana Varanda, sentada a uma mesa defronte da embaixada. Por detrás, no muro de um prédio estão colados os mais diversos cartazes e recortes com "as últimas" sobre Timor. Num pano largo, pergunta-se: "Has dormido bien hoy?". Uma interrogação dirigida à opinião pública e aos políticos espanhóis, que teria resposta horas mais tarde.Não é normal que uma "T-shirt" com o autocolante da IU, a coligação que engloba os comunistas espanhóis, conviva com um pólo da Juventude Popular de Portugal. Quando Cristina Almeida, senadora espanhola da Nova Esquerda, e Valentim Loureiro pulam à ordem de "quem não salta é indonésio", é certo que algo se passa. E, comprimido contra as barreiras amarelas da polícia, está um friso de políticos, de Francisco Louçã a Vieira de Almeida, de Narciso Miranda ao popular espanhol Robles Fraga. "Venho manifestar o meu sentimento de indignação com o que se está a passar com o povo de Timor, tem de haver uma intervenção imediata", diz ao PÚBLICO Fraga, responsável das relações internacionais dos conservadores espanhóis."Espanha por Timor", gritou uma dirigente das Organização Não Governamentais espanholas após a leitura de um comunicado aplaudido por Luís Filipe Meneses e Fernando Gomes. Um texto crítico para as tradicionais relações de Madrid com Jacarta, que pede o fim dos créditos governamentais à Indonésia, nos últimos seis anos, no valor de 36 milhões de contos, de denúncia da incapacidade da comunidade internacional. "ONU, mexe-me esse cu", respondeu a multidão. Não apenas na apertada Calle Agastia, junto à embaixada, mas também num desfile pela Arturo Soria, a artéria principal de um bairro de classe média-alta. "Quando encontrar o embaixador indonésio vou-lhe dizer que estive, como cidadão, à porta dele com milhares de portugueses por solidariedade com o povo de Timor-Leste", disse ao PÚBLICO António Martins da Cruz, embaixador português em Madrid. "Esta é também uma prova de que a diplomacia portuguesa está solidária com o povo de Timor, seja nos engravatados gabinetes ou na rua, de jeans", insistiu Martins da Cruz.No chão, pequenas velas simbolizavam as mortes e a esperança. Junto a uma vela de um metro, Rómulo Novais, de 15 anos, prepara outras mais pequenas. "Esta, a grande, foi-nos dada por um amigo no santuário de Lourdes, recorda Rómulo que prepara o material com gestos apreendidos em muitas vigílias. O fogo serve, também, para consumir inúmeras bandeiras indonésias que jovens timorenses vão queimando durante a tarde. São momentos de tensão, com garrafas de água a passarem a escassos centímetros dos polícias espanhóis.Também voam pedras: dez vidros têm as suas marcas. Mas o pessoal da embaixada da Indonésia vai ter hoje mais trabalho em retirar as dezenas de rolos de papel ou as centenas de panfletos com a foto de Xanana Gusmão. Jovens timorenses querem elevar o protesto. "Pá! quem saltar lá para dentro é indonésio", alerta uma jovem. Os organizadores multiplicam-se em contactos dissuasores e um deles, José Fernandes Tomás, revela que o presidente Sampaio já lhe comunicou o apreço pela forma como se desenrolou o protesto. "Saiu tudo tão bem, vamos ver se não se estraga", comenta um oficial do Corpo de Intervenção da polícia espanhola. "Agradeço a vossa cooperação que foi excepcional", respondeu o deputado Alberto Martins. Partiram de noite, mas o protesto foi gravado pelas rádios e televisões: como nos tempos solidários da "movida" madrilena.