Confidências dos cem anos de Emídio Guerreiro
Emídio Guerreiro leva cem anos a defender a liberdade e outros tantos a justificá-la. Usa o direito de opinião para exprimir as suas ideias e fá-lo sem temer as polémicas, que considera necessárias. A festa de aniversário, na passada segunda-feira, foi disso eloquente exemplo.
Um bom milhar de pessoas reuniu-se na Estufa Fria, em Lisboa, para homenagear Emídio Guerreiro e desejar-lhe uma longa vida. Ele aceitou, comovido, os elogios, mas no improviso que fez não deixou de separar as águas entre os que considera seus companheiros de liberdade e os outros, com quem se cruzou, mas com quem discordou. É o caso, por exemplo, de Dias Amado e Palma Inácio. Em dia de confidências, revelou ao PÚBLICO que um e outro foram seus companheiros de luta na Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), mas deles guarda diferentes recordações. Com Palma Inácio mantém uma relação azeda desde 1967, depois de um primeiro encontro em que a admiração foi mútua. Ambos queriam a liberdade em Portugal, do mesmo modo que estavam convencidos que Salazar governava em ditadura e que a tirania só com a força se derruba. De Dias Amado conserva intacta a admiração e só lamenta que ele já não tenha podido assistir ao 25 de Abril.O azedume com Palma Inácio veio com a repartição do dinheiro obtido com o assalto ao Banco de Portugal, em 17 de Maio de 1967, dirigido por este. Os mais de 29 mil contos aí obtidos (que a preços actuais representariam quase um milhão de contos) deviam servir para levar a cabo o derrube do regime salazarista, através de acções políticas directas e não unicamente por manifestações de protesto. A primeira divisão surgiu na constituição do conselho superior da LUAR, órgão político da organização que segundo Guerreiro devia ter poderes para gerir os fundos obtidos na luta armada e dirigir os operacionais nas suas acções. Palma Inácio discordou e "fez coro" com os seus companheiros "operacionais". Considerou que não podia haver separação entre "políticos" e "operacionais" e não aceitou a demonstração de Emídio Guerreiro, que argumentava com a sua experiência de antigo resistente na guerra civil de Espanha e no combate contra Hitler. Na realidade, Guerreiro tinha profundas dúvidas sobre as motivações políticas dos companheiros de Palma Inácio, que via como simples "aventureiros". Muito do dinheiro obtido em Figueira da Foz estava "marcado", pois o Banco tinha a numeração das notas. Embora com reservas, Palma Inácio aceitou que o conselho superior da LUAR ficasse fiel depositário de algum dinheiro do assalto, reservando para si e para o grupo de operacionais uma quantia para gastos de sustentação pessoal. Com esta partilha, garante Guerreiro, a direcção política ficou com três mil contos e Palma Inácio e os seus operacionais com quatro mil contos. Dos três mil que ficaram à sua guarda sobravam pouco mais de 1500 contos quando se deu o 25 de Abril. Guerreiro entendeu que esse dinheiro deveria ser devolvido ao Banco, mas Palma Inácio considerou que devia ir para o Conselho da Revolução, devendo ser ele, autor da operação, quem o entregaria. Esta proposta foi aceite e o dinheiro entregue em Paris a um emissário de Palma Inácio. "Só que esse dinheiro nunca foi entregue ao Conselho da Revolução", afirma Emídio Guerreiro. Quanto ao remanescente, garante existir uma contabilidade minuciosa de todos os gastos e é aqui que aparece a figura de Dias Amado, um oposicionista do regime salazarista, membro do Movimento de Unidade Democrática e por isso expulso da docência da Faculdade de Medicina de Lisboa. Guerreiro convenceu-o a fazer parte da LUAR enquanto representante do "interior", mas ele pôs uma condição: a de que o seu recrutamento só fosse do conhecimento de Guerreiro e de um outro membro do conselho superior, com exclusão de Palma Inácio. Dias Amado, também grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, entrou assim no plano em curso para sequestrar o major Silva Pais, director da PIDE, a polícia política salazarista. O objectivo era interrogá-lo para obter informações sobre o regime e, depois, trocá-lo por anti-fascistas presos. "O projecto infelizmente abortou", explica Guerreiro, porque o operacional que deveria dirigir a operação teve um acidente rodoviário em Espanha e acabou por ser detido pela Guarda Civil.