O século das biotecnologias
Charles Darwin e a sua teoria da evolução e Gregor Mendel, que compreendeu as leis da hereditariedade através das ervilhas do seu jardim, contribuíram para desvendar o funcionamento da natureza e podem ser classificados como os pais do século que aí vem, que se anuncia como o das biotecnologias. Darwin mudou a concepção que o homem tinha de si próprio e Mendel abriu as portas para a descoberta do minúsculo mundo das moléculas.
A clonagem anda nas bocas do mundo desde que, em 1993, investigadores norte-americanos anunciaram ter clonado embriões humanos num prato de laboratório durante alguns dias. A revelação ao mundo da ovelha Dolly, que foi clonada a partir de uma célula mamária de uma ovelha adulta, reforçou o fantasma dos clones na imaginação colectiva. A mais célebre ovelha da história mostrou que era possível fazer com que uma célula perfeitamente diferenciada recuperasse a sua forma indiferenciada, com o potencial de se transformar em células de tecidos diferentes, como nas fases iniciais do embrião. No ano passado, cientistas norte-americanos anunciaram ter conseguido cultivar em laboratório células indiferenciadas humanas, o que abriu a porta a uma espécie de idade de ouro para a medicina: o fabrico de órgãos novos para transplantes ou de enxertos capazes de reparar um coração com problemas, por exemplo.Mas se a clonagem humana e a tecnologia das células indiferenciadas levanta obstáculos éticos - é preciso manipular embriões humanos -, a clonagem animal levanta menos objecções. O objectivo é obter muitas cópias de um animal com certas características - como uma vaca que dê muito leite. Neste momento, a técnica ainda não está aperfeiçoada e há problemas como o excessivo tamanho das crias, que dificultam o parto.Quando o Projecto do Genoma Humano estiver concluído, em 2002, os cerca de 100 mil genes do património genético do homem encontrar-se-ão descodificados. Estarão sequenciados nada menos que os três mil milhões de pequenos componentes químicos que constituem a globalidade dos nossos genes - que se encontram, dentro de cada célula, enrolados numa molécula em forma de dupla hélice, que mede 1,8 metros de comprimento. Depois da cartografia do genoma, os cientistas esperam identificar os genes responsáveis por mais de quatro mil doenças. Mas já hoje os testes genéticos fazem parte do quotidiano. É vulgar a recolha de líquido amniótico para a despistagem no feto do síndrome de Down, uma doença devida a uma anomalia no cromossoma X. No futuro, os testes genéticos permitirão ao indivíduo saber as suas predisposições para muitas doenças. O objectivo é que surja uma cura para elas - do cancro à doença de Parkinson e à fibrose quística. Por ora, estas terapias - em que se introduzem genes nos ADN dos doentes a fim de corrigir certas anomalias - não passam de experiências. Embora já tenham sido realizadas em bastantes de doentes, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos ainda não consideram que a sua eficácia está demonstrada. Ter um mapa do genoma humano suscita, no entanto, medos. Um é o de que as susceptibilidades genéticas de um indivíduo sejam aproveitadas, por exemplo, por companhias de seguros, pelo que se discute quem deverá ter acesso a estes dados, considerados Património da Humanidade. Também se prevê que as terapias genéticas não sirvam só para corrigir defeitos nas células somáticas, que modificam apenas um indivíduo, mas também nas células germinativas, ao introduzir genes nos óvulos e espermatozóides. Por poderem afectar a descendência humana - e por isso, a evolução da nossa espécie - as terapias genéticas não são assunto pacífico. A insulina, uma hormona imprescindível a milhões de diabéticos, já teve como principal fonte o pâncreas de porcos e bovinos. Hoje não é assim, graças à engenharia genética. A insulina é fabricada industrialmente por bactérias em cujo património genético foi integrado um gene humano e é indistinguível, do ponto de vista químico, da produzida pelo homem. Outros seres vivos mais complexos que as bactérias estão também a receber genes humanos, para se transformarem em verdadeiras fábricas de medicamentos e de órgãos para o homem. Por exemplo, em 1997, a empresa PPL Therapeutics, na Vírginia (EUA), anunciou o nascimento de Rose - uma vaca transgénica cujo leite contém uma proteína humana, a lacto-albumina alfa, essencial para crianças prematuras. Outras das aplicações que a biotecnologia explora é a inserção de genes que possibilitem a utilização dos órgãos de animais (como o porco) em transplantes, tornando-os compatíveis com o sistema imunitário do homem. Por enquanto, uso de órgãos animais para transplantes, ou xenotransplantes, é apenas experimental. Mas a possibilidade de usar órgãos de animais permitirá ter um "stock" inesgotável e a manipulação do património genético dos animais pode tornar possível fazer órgãos "à medida", que se ajustam às características imunitárias dos indivíduos. As reservas médicas sobre a xenotransplantação assentam na possibilidade de serem introduzidos novos vírus na espécie humana, que se tornem uma epidemia mundial - como aconteceu com os macacos africanos, que parecem ter transmitido o vírus da sida para o homem. Na próxima década, quando comermos batatas e tomate, podemos estar a ficar imunizados contra uma doença, sem levar sequer uma injecção. As vacinas convencionais contêm em geral um fragmento de uma proteína da bactéria ou do vírus contra o qual devem proteger as pessoas. Treinam o sistema imunitário na produção de anticorpos contra esse agente patogénico. Mas a vacinação genética poderá dar resultados ainda melhores. Baseando-se no mesmo princípio geral, as vacinas genéticas usarão um fragmento do material genético da própria bactéria ou vírus. Ao serem introduzidos no organismo, esses genes vão comandar a produção das proteínas que estimulam o sistema imunitário. O património genético dos agentes patogénicos pode ser inoculado directamente na pessoa mas também em inofensivas bactérias do solo, por exemplo. Quando as plantas assimilarem essa bactéria, passarão a incluir no seu próprio património genético o genoma do agente patogénico. A primeira vacina genética comercializada foi a da hepatite B, em 1986, mas o seu preço alto não permite que seja adoptada a nível mundial. Em desenvolvimento estão também uma vacina genética contra a cólera, várias diarreias e a tosse convulsa.Há 21 anos, nasceu Louise Brown, a primeira bebé-proveta. Nessa altura, as pessoas diziam que não recorreriam às fertilização "in vitro", mesmo que precisassem. Hoje, passadas duas décadas, estas técnicas estão tão vulgarizadas que aquilo de que se fala é da ética de fazer uma selecção das características desejadas pelos pais para os seus bebés. Os testes genéticos começaram por ser uma tentativa de escolher bebés saudáveis - como um bebé do sexo feminino, se os pais forem portadores de um defeito genético herdado apenas pelos filhos. Mas muitos pais gostariam também de escolher se querem ter menino ou menina, sem qualquer motivo médico. E os passos seguintes podem ser ainda mais controversos: porque não garantir que o filho vai ser alto e atraente, para ter mais oportunidades de singrar na vida? Ou impedir à partida o nascimento de bebés que têm problemas de saúde, alguns dos quais até possíveis de serem tratados? E porque não, perguntarão alguns, fazer um clone do pai ou da mãe, um novo ser geneticamente idêntico a um dos progenitores? Os "corn flakes" do pequeno-almoço, o chocolate com que se delicia, o "ketchup" que põe no cachorro-quente e a "t-shirt" que veste talvez tenham todos organismos transgénicos na sua composição. Pela introdução de genes de umas espécies noutras, ultrapassando as restrições naturais, os investigadores tornaram o milho, a soja, o algodão ou o tomate resistentes a pragas, pesticidas, herbicidas, à seca ou ao apodrecimento. Produzir mais, de forma mais barata e mais rapidamente é o lema. Os organismos transgénicos também procuram satisfazer os nossas ambições estéticas: talvez um dia tenhamos a desejada rosa azul - um pigmento raro na natureza, privilégio apenas de algumas flores, como as petúnias e as violetas. Há uma empresa australiana, chamada Florigene, que há vários anos persegue esse objectivo. Já isolou o gene responsável pela produção do pigmento azul, e conseguiu utilizá-lo para produzir cravos de vários tons aproximados, do malva ao preto, mas a rosa permanece, por ora, inalcançável. Mas também há o caso da tabaqueira norte-americana Brown and Williamson, que reconheceu ter manipulado geneticamente plantas de tabaco, para aumentar a taxa de nicotina duas vezes em relação às plantas vulgares. O mercado dos transgénicos movimenta hoje milhões de dólares por ano e estima-se que, no próximo ano, as áreas cultivadas atinjam os 60 milhões de hectares: 81 por cento na América do Norte, oito por cento na América Latina, dez por cento na Ásia e um por cento na Europa. Mas há quem diga que estas culturas têm riscos para a saúde humana e para os ecossistemas, devido à libertação dos organismos no ambiente. Em Portugal, como no resto do mundo, a polémica também passa pela reivindicação de rotulagem nos produtos alimentares que contêm organismos transgénicos.O homem tem lutado contra as pragas usando os seus predadores naturais ou produtos químicos. Na fábrica de moscas da fruta da Madeira, inaugurada em 1996, recorre-se às biotecnologias para criar moscas que evitam estragos nas frutas do arquipélago, no valor de mais de 500 mil contos por ano. Os machos desta mosca ("Ceratitis capitata") não são iguais aos seus congéneres selvagens: são esterilizados, com raios gama, mas competem com os selvagens para acasalar com as fêmeas. O interesse destas moscas biotecnológicas -produzidas a partir de uma estirpe desenvolvida pela Agência Internacional de Energia Atómica -não inclui só a Madeira. Países como Israel estão interessados e, como esta fábrica é única no Mediterrâneo, a Espanha, Itália, Marrocos e o Médio Oriente são destinos possíveis. O reverso da medalha é que a luta biológica, seja mais ou menos avançada tecnologicamente, pode reduzir a diversidade da Terra, extinguido espécies que o homem considera inúteis (pelo menos, por ora).Quantas plantas existem no mundo? E insectos? E bactérias? Ao certo, por muitas que sejam as estimativas, ninguém faz ideia. Quem sabe se o homem não encontrará a cura para a sida, o cancro ou outras doenças mortais num fungo, ainda desconhecido, que viva numa raríssima planta, também desconhecida, que desabrocha no tronco mais alto de uma árvore existente numa floresta recôndita? Sabe-se lá que surpresas reserva a multiplicidade de espécies. Conscientes disto, as empresas farmacêuticas são um forte aliado da preservação da diversidade biológica. Sabem que quando se arrasa uma floresta para dar lugar a terras agrícolas, ou se destroem os recifes de corais, talvez se perca um princípio activo que cura uma doença. Por isso, as farmacêuticas cobiçam a riqueza biológica de certos países. É o caso da Merck, que em 1991 se comprometeu a pagar ao Instituto de Biodiversidade da Costa Rica um milhão de dólares (cerca de 190 mil contos) por todas as plantas, insectos e amostras de terra recolhidas, além de três por cento dos lucros obtidos com medicamentos cuja origem esteja na Costa Rica. Muitas outras empresas farmacêuticas estão a passar a pente fino florestas e desertos à procura de plantas e animais que permitam desenvolver novos medicamentos. Só que estes recursos naturais desaparecem a olhos vistos (entre 50 a 150 espécies por dia). A empresa norte-americana Neurex, por exemplo, interessou-se por uma espécie de caracol marinho que vive em recifes de coral nas Filipinas. Armados com uns pequenos arpões, ligados a cápsulas de veneno, estes caracóis paralisam um peixe em menos de um segundo. A análise das toxinas segregadas pelo caracol revelou que uma delas bloqueia a dor crónica e intratável, como a dos doentes de cancro. Os cientistas criaram uma versão sintética da toxina - mil vezes mais forte do que a morfina e sem os efeitos de habituação.A América e o mundo inteiro seguiram o julgamento de O.J. Simpson pela televisão, suspensos das revelações inesperadas e do veredicto que jamais satisfaria todos. Mas a ilibação de O.J. do assassinato da sua mulher e respectivo amante foi decidida pelos testes de ADN - a assinatura molecular única de cada ser humano. No Reino Unido, existe uma base de dados genética criminal desde 1995, com mais de 360 mil impressões digitais genéticas. São feitas cerca de 500 comparações semanais entre o ADN dos detidos, conseguido através de um esfregaço de células retirado da boca, e vestígios deixados no local do crime, como cabelos, pingos de sangue ou películas de pele. A eficácia deste método é altíssima. Os suspeitos são identificados não pelo seu genoma completo, mas apenas por alguns pares de constituintes da molécula de ADN. Se três pares forem iguais aos deixados na cena do crime, a probabilidade de erro da polícia é de uma em duas mil.