Macondes reeditados

A reedição do primeiro volume da monografia "Os Macondes em Moçambique", intitulada "Aspectos Históricos e Económicos" já está cá fora. É um importante estudo etnográfico realizado entre 1957 e 1961, no planalto Maconde por Jorge Dias e sua equipa, que incide sobre "as minorias étnicas do Ultramar português". No caso, os macondes.

Em boa hora decidiu a Comissão dos Descobrimentos e o Instituto de Investigação Científica e Tropical do Ultramar reeditar "Os Macondes de Moçambique". Melhor ainda seria se tivesse sido prevista a reedição completa dos quatro volumes desta que foi a mais importante monografia portuguesa em território africano, antes do termo do século. Contentemo-nos, por agora, com o primeiro volume, 'Aspectos Históricos e Económicos', enquanto aguardamos o segundo, 'Cultura Material', o terceiro, 'Vida Social e Ritual', e o quarto, 'Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos', e lamentamos que o quinto, sobre escultura e música, nunca tenha, sequer, chegado à estampa: os tumultos independentistas desencadeados no Norte de Moçambique a partir de 1960 impediram a sua conclusão. "Os Macondes de Moçambique" são o resultado de diversas investidas etnográficas realizadas entre 1957 e 1961 no planalto Maconde por Jorge Dias e sua equipa: Margot Dias, sua mulher e 'primeira assistente', Manuel Viegas Guerreiro, adjunto, e Fernando Galhano, encarregue das ilustrações. Estas missões desenvolveram-se no âmbito de uma linha de acção proposta por Adriano Moreira - então director do Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, denominada 'Missão de Estudos das Minorias Étnicas de Ultramar Português', e cuja competência específica, atribuída por determinação ministerial em 1957, era a de "estudar as minorias étnicas do ultramar português e a sua repercussão na cultura portuguesa". Obviamente que, para além das competências científicas explícitas, a missão visava interesses políticos concretos relativamente a uma zona 'quente' onde viriam, mais tarde, a eclodir os primeiros tumultos independentistas, eventualmente inflamados por rastilhos já acesos do lado de lá do Rovuma, entre os Macondes do Tanganica, então sob ocupação inglesa. Das missões - que eram, como o próprio Jorge Dias lamenta, demasiado breves para aquilo já exigido em termos científicos pela Antropologia da época, acompanhando apenas uma estação e por isso designadas 'missões do cacimbo' - resultariam, para além dos registos etnográficos meticulosos, relatórios que viriam a ter a chancela de 'confidenciais'. Constam hoje do Arquivo Oliveira Salazar em depósito no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. A dívida a Jorge Dias pelo papel importante que desempenhou na fundação da disciplina da antropologia enquanto ciência autónoma em Portugal, mas também pelas 'medidas correctivas' que apontou ao colonialismo português - embora sem nunca duvidar dele como projecto - só ficará definitivamente saldada com a publicação desses relatórios, e o esclarecimento definitivo da sua posição face ao regime.Depois de um período florescente de uma antropologia - entendida então apenas como 'antropologia física' - útil para uma colonização especialmente preocupada com a rentabilização económica e em que interessava medir a capacidade de trabalho do indígena, o aparelho de Estado começou progressivamente a sentir a necessidade de um conhecimento cultural e social dos povos colonizados. Esta necessidade - que em Portugal se fez sentir muito mais tarde do que noutras potências colonialistas - terá sido condicionada, entre outras coisas, pela Conferência de Bandung que, em 1955, estigmatizava, definitivamente o colonialismo português, ao mesmo tempo que evidenciava o processo independentista em curso. A urgência de uma inflexão na política ultramarina portuguesa foi particularmente pressentida por Adriano Moreira que liderou, nos anos 50, um 'plano de ocupação científica' dos territórios colonizados. A partir de então passa a ser estimulada a prática 'assimilacionista' sob a égide do já mítico discurso do 'luso-tropicalismo', apostando-se na incorporação do território e dos povos colonizados num 'todo nacional'.Na ausência de um quadro estabelecido de investigadores científicos que pudessem contribuir para esse projecto, e perante a figura proeminente de Jorge Dias, reconhecido já internacionalmente como etnólogo, a escolha não era difícil. Tanto mais que Jorge Dias subscrevera publicamente a tese de Gilberto Freyre e guardava do colono português a imagem mítica de um homem cristão, humanista e pouco racista (os relatórios das primeira missões em África evidenciariam, depois, o seu desconcerto perante uma realidade bem diferente). Foi assim que, depois de cerca de dez anos de trabalho de campo em Portugal, de que resultaram outros dois clássicos da etnografia portuguesa - as monografias de Vilarinho da Furna e Rio de Onor - e durante os quais se empenhou na institucionalização de uma antropologia cultural (que então designava ainda como etnologia) independente da antropologia física, Jorge Dias foi convidado para a primeira verdadeira missão de antropologia aplicada portuguesa em África. Ao que parece fê-lo lucidamente. E é este papel de herói fundador comprometido com o regime que faz dele uma personagem controversa. Embora sem o afã dos estudos pós-coloniais que encontramos nas latitudes anglo-saxónicas, onde uma antropologia aplicada e implicada nos regimes colonialistas foi mais traumática para a disciplina, a personagem de Jorge Dias tem suscitado alguma polémica no meio académico português.Alguns, como a historiadora Ana Barradas, acusaram os antropólogos de um certo branqueamento do seu pensamento colonial, por detrás da "exaltação dos seus traços mais estimáveis: a carreira distinta de professor e etnólogo, as qualidades de trabalho, o calor e a generosidade pessoais". Mas se lermos atentamente o prefácio que o antropólogo Rui Pereira faz a esta reedição de "Os Macondes de Moçambique" percebemos que ele é consonante com uma etapa da antropologia portuguesa contemporânea que, depois de uma fase de simples recusa ou crítica exacerbada (por exemplo, a de Mário Moutinho), retoma agora distanciada, tranquila e reflexivamente, a sua produção original. É verdade que, como refere João Leal no último número da revista "Etnográfica", "é pena que a introdução de Rui Pereira não vá mais longe na exploração dos aspectos antropológicos dessa experiência, referenciando por exemplo o modo de construção e as opções teóricas de 'Os Macondes' no quadro da antropologia africanista da época." A inquietação política parece incomodar aqui, ainda, ao ponto do enquadramento científico do pensamento de Jorge Dias ser preterido por Rui Pereira em favor de um esclarecedor enquadramento político, testemunhado pelos recurso frequente a comentários constantes dos relatórios confidenciais. Mas se isso é óbice do ponto de vista da história da antropologia, é trunfo do ponto de vista de uma antropologia do colonialismo cujo propósito, diz Rui Pereira, "não é o de saber se a antropologia colaborou, ou não, nos objectivos da gestão colonial - esta é uma questão há muito ultrapassada. O que realmente importa conhecer, sistematizar e analisar são os objectivos, as técnicas e os pressupostos teóricos envolvidos". A qualidade científica dos "Macondes de Moçambique" é discutível - sobretudo se colocarmos a obra no quadro da produção teórica internacional que Jorge Dias parecia, contudo, conhecer. Também foi objecto de polémica - entre João Pina Cabral e Manuel Viegas Guerreiro - a perenidade da sua 'escola'. Já o espólio de cultura material recolhido em África e em Portugal, e o espírito do Museu de Etnologia que fundou com vocação universalista, contrariando o cariz colonial que se lhe queria impor, merecem elogio unânime. Mas o que é verdadeiramente incontestável, e inconstestado entre os antropólogos é a abnegação e a entrega, é o espírito de 'missão' de Jorge Dias que, porque tomou a antropologia como projecto de vida, a conseguiu impor em Portugal.Em toda esta polémica estão ausentes os macondes, como se tivéssemos que continuar a vê-los através de lentes coloniais, passivos à ocupação primeiro militar e económica e depois científica, massa popular, força de trabalho, ou 'membros de uma cultura'. Mas a figura de Rafael (de quem não conhecemos, contudo, o apelido), um dos intérpretes da equipa de Jorge Dias, abre caminho para outra pesquisa interessante: sob a cobertura do seu trabalho para os 'brancos', ele participava na rede clandestina de apoio ao movimento de libertação. Ora apesar de todos os equívocos históricos entre colonizador e colonizado, investigador e investigado, etnólogo e informante, missões e contra-missões, Margot Dias (ver PÚBLICO de 1 de Maio de 1990), sobrevivente da história e do projecto etnográfico de Jorge Dias, ainda há pouco contava com o apoio incondicional de Rafael, que continuava a enviar-lhe informação etnográfica solicitada, para o prosseguimento de uma empresa que ultrapassa o tempo, e os limites do Império: o do conhecimento minucioso dos homens e suas realizações culturais.

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