100 anos com Hitchcock
Faz hoje 100 anos que Alfred Hitchcock nasceu. O entusiasmo que o centenário do seu nascimento tem gerado é apenas mais uma prova da enormíssima amplitude da sua obra. E o segredo do mestre que mudou o cinema parece estar no facto de em cada filme de Hitchcock haver afinal um filme para toda a gente. Mas do outro lado da câmara esteve sempre um homem que dizia que fazia filmes para não ir para a prisão: uma sugestão de que o cinema lhe permitiu libertar os recantos mais negros da sua alma no espaço de uma ficção. Ficam também aqui dez paragens obrigatórias numa viagem ao mundo de Hitchcock.
O maior realizador de todos os tempos? É bem possível que o seja, mas se não o for o que dificilmente alguém lhe tira é o título de mais popular realizador de todos os tempos. A admiração por Hitchcock atravessa todas as franjas do público de cinema, e o seu nome diz tanto ao mero consumidor de pipocas como ao mais empedernido universitário. Mas isso - o facto de em cada filme de Hitchcock haver um filme para toda a gente, haver um "thriller" e haver um ensaio metafísico - foi, desde sempre, um dos segredos do cineasta inglês e uma das suas mais cultivadas preocupações. A mobilização que o centenário do seu nascimento, que hoje se assinala, tem gerado um pouco por todo o lado é apenas mais uma prova da enormíssima amplitude do seu cinema.Em 1979, quando restava a Hitchcock pouco mais de um ano de vida, o American Film Institute atribuiu-lhe um Life Achievement Award. Na cerimónia, durante o discurso de agradecimento, o realizador proferiu as seguintes palavras, que ficaram célebres: "Quando tinha seis anos de idade, fiz uma coisa que o meu pai considerou susceptível de repreensão. Mandou-me ir, com um bilhete escrito por ele, à esquadra de polícia mais próxima. O polícia de serviço leu o bilhete e fechou-me numa cela durante cinco minutos, dizendo que 'isto é o que fazemos aos rapazes mal comportados'. Desde então, fiz tudo o que me foi possível para evitar a prisão e o enclausuramento. Para vocês, jovens, a minha mensagem é: mantenham-se fora da prisão!". Há nestas palavras uma dimensão elipticamente confessional que ultrapassa, em muito, a anedota - e noutras ocasiões Hitchcock terá dito, explicitamente, que "fazia filmes para não ir para a prisão". Não é só o proverbial horror de Hitchcock à polícia que aqui se explica, mas sobretudo a consciência de uma culpa omnipresente, a consciência de que só poderia libertar os recantos mais negros da sua alma no espaço de uma ficção - ou seja, no cinema, que para Hitchcock foi, como se depreende da passagem citada, o único lugar onde tudo era permitido e, portanto, em simultâneo uma forma de catarse, exorcismo e expiação. Hitchcock foi um homem atormentado que se salvou (tanto quanto isso lhe foi possível) pelo cinema; e em troca, ofereceu-lhe um dos imaginários mais complexos e convulsivos de todo o século XX artístico.Alfred Hitchcock nasceu em 1899, numa família da pequena burguesia londrina. O pai era criador de aves e comerciante de ovos, pormenor que Hitchcock várias vezes utilizou como explicação da aversão que sempre teve por pássaros (um manual freudiano diria, muito provavelmente, que isto não era senão o recalcamento de uma aversão ao pai). Mais importante do que isso, a família Hitchcock era profundamente católica e o jovem Alfred, que iniciou a sua escolaridade num colégio jesuíta, foi desde muito cedo obrigado a coexistir com as noções de culpa e de pecado. Este "background" da infância de Hitchcock é tema recorrente quando se trata de encontrar chaves para descodificar o seu mundo cinematográfico, abundante em reflexões sobre a culpa, em personagens falsamente culpadas ou falsamente inocentes. Mas há que somar ainda outro factor que, esse sim, se manteve durante toda a sua vida: a péssima relação com o seu corpo avantajado (Hitchcock era, durante os primeiros tempos de escola, sistematicamente posto de lado pelas outras crianças, o que muito deve ter feito para alimentar a sua misantropia) e, por arrasto, com a sexualidade, que no seu cinema é sempre o resultado da mescla de uma auto-punição de católico e de uma agressividade de excluído - e foi François Truffaut quem notou, lapidarmente, que Hitchcock filmava as cenas de amor como se fossem assassínios e os assassínios como se fossem cenas de amor.É neste explosivo "cocktail" moral que se forma a personalidade de Hitchcock, que nestes primeiros anos encontra na literatura e na arte (chegou a cursar história de arte na universidade) as suas primeiras fontes de alimentação e válvulas de escape. A sua habilidade no desenho garantiu-lhe, aos 19 anos, um emprego no departamento de publicidade de uma companhia telegráfica, como autor de cartazes e anúncios promocionais. Daí seguiu, pouco tempo depois, para a indústria cinematográfica, sendo contratado pela divisão londrina da Famous Players-Lasky para ir desenhar intertítulos e legendas. Hitchcock ascendeu rapidamente no organigrama da empresa e não demorou muito até que estivesse encarregue de supervisionar todo o departamento de intertítulos. Em 1922, quando os estúdios da Famous Players foram comprados pelo produtor britânico Michael Balcon, Hitchcock foi promovido a assistente de realização, mas a sua actividade, nos anos que se seguiram, estendeu-se à direcção artística e à escrita de argumentos para uma série de produções de Balcon. A importância de Hitchcock no funcionamento da empresa crescia e, muito logicamente, acabou promovido a realizador em 1925, cabendo-lhe dirigir, como filme de estreia, "The Pleasure Garden", co-produção anglo-germânica - e a sua deslocação, no âmbito desta co-produção, à Alemanha e aos estúdios da UFA (onde Fritz Lang começara, havia pouco tempo, a morosa rodagem de "Metropolis") teria exercido sobre Hitchcock uma assinalável influência, sendo mesmo responsável pela aura "expressionista" de alguns dos seus filmes do período britânico como "The Lodger"/"O Inquilino Misterioso" (1926), que o cineasta sempre considerou como sendo verdadeiramente o primeiro "Hitchcock movie".Hitchcock casou (virgem, diz-se) nesse ano de 1926 com Alma Reville, que seria a sua mais constante colaboradora durante o resto da sua obra. Em 1929, com "Blackmail", usou o som pela primeira vez, e ao longo da década seguinte, em filmes como "The Man Who Knew Too Much"/ "O Homem que Sabia Demais" (1934), "The Thirty-Nine Steps"/"Os 39 Degraus" (1935), "Secret Agent"/"Os Quatro Espiões" (1936) ou "The Lady Vanishes"/"A Desaparecida" (1938) foi consolidando uma reputação que lhe valeria um convite de David Selznick para ir filmar em Hollywood. "Rebecca"/"Rebeca" (1940) foi o seu primeiro filme americano e a consagração foi imediata, com a Academia de Hollywood a conceder-lhe o Óscar de melhor filme do ano. Apesar da genialidade de grande parte dos seus filmes ingleses, foi na América que, definitivamente, Hitchcock se tornou Hitchcock. Continua a ser espantoso - mesmo que com algumas atribulações, em termos de bastidores - o modo como Hitchcock se adaptou aos códigos e aos géneros do cinema de Hollywood, e sobretudo o modo como, sem os destruir, os adaptou ao seu cinema. A começar por "Rebecca", que se insere de pleno direito na melhor tradição romanesca e melodramática do cinema americano, a continuar nessa brilhante e perturbante incursão pela América profunda de "Shadow of a Doubt"/"Mentira" (1943) - talvez o primeiro antepassado legítimo do "Blue Velvet" de Lynch - e com paragem obrigatória no "thriller", género que o cineasta deixa completamente de pernas para o ar em "Notorious"/"Difamação" (1946), o filme que Truffaut, num célebre texto, considerou ser a "quintessência" do cinema de Hitchcock.Perfeitamente consolidada, a partir de meados da década de 40, a sua posição na indústria americana, abre-se aquele que é, muito provavelmente, o mais arrojado período da obra de Hitchcock, e que vai, "grosso modo", de 1948 (ano de "Rope"/"A Corda", o filme do "plano único") a 1964 (ano de "Marnie", talvez o definitivo ensaio sobre a culpa como recalcamento e mal congénito). São os anos em que se acentua a dupla natureza do cinema de Hitchcock: ao mesmo tempo cinema para o "box-office" (Hitch costumava dizer que não se pode brincar quando do nosso filme depende o emprego de centenas de pessoas) e cinema experimental, criado a partir de arrojadíssimas apostas formais - entre "Rope" e "Marnie", títulos como "Strangers on a Train"/"O Desconhecido do Norte Expresso" (1951), "Rear Window"/"Janela Indiscreta" (1954), "The Wrong Man"/"O Falso Culpado" (1956), "Vertigo"/"A Mulher que Viveu Duas Vezes" (1958), "North by Northwest"/"Intriga Internacional" (1959), "Psycho"/"Psico" (1960) ou "The Birds"/"Os Pássaros" (1963), numa relação não exaustiva. Este período - de uma criatividade porventura única em toda a história do cinema - coincide com um reconhecimento que, de repente, vem de todos os lados: da crítica, que através dos franceses "Cahiers du Cinéma" ergue Hitchcock, contra quase tudo e quase todos, à condição de "autor"; e da televisão, que nos anos 50 lhe "oferece" uma série com o seu próprio nome (o célebre "Hitchcock Presents").Hitchcock só deixou de filmar em 1976 ("Family Plot"/"Intriga em Família") e o seu último verdadeiramente grande filme será "Frenzy"/"Perigo na Noite" (de 1972, marcando um episódico regresso ao cinema inglês). Sabe-se que nos últimos anos de vida, progressivamente debilitado por doenças e mazelas físicas, o seu ânimo decaiu muito, sem que tenha, por isso, desistido de tentar voltar a realizar. Poucos dias antes de morrer, terá dito: "Nunca sabemos como é o fim. Temos que morrer para sabermos exactamente o que acontece depois da morte. Embora os católicos tenham as suas esperanças".