O herói discreto da democracia
Morreu o mais político dos militares que fizeram Abril, o herói discreto da democracia, o homem solitário que esteve por detrás dos seus grandes textos, mas que alguns culparam pelos caminhos da descolonização. Melo Antunes, que vai hoje a enterrar, é, no entanto, um desconhecido para muitos portugueses, apesar de ontem amigos e adversários serem unânimes em reconhecer que Portugal tem para com ele uma dívida que não chegou a pagar-lhe.
Ernesto Melo Antunes morreu de cancro, às 23h30 de terça-feira. Hoje, pelas 11h, é celebrada missa de corpo presente na Igreja de São Pedro de Sintra, seguindo o cortejo fúnebre para o Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. Morreu cedo, aos 66 anos, na casa branca, cheia de livros, que tinha reconstruído a partir de um velho casarão, nos arredores de Sintra, onde passou os últimos anos. Anos discretos, como sempre foi discreta a figura deste homem, a quem ontem Maria de Lurdes Pintasilgo chamou "a figura mais importante no estabelecimento da democracia em Portugal". Só pela sua atitude discreta se compreende que ontem, quando Manuel Alegre e António Guterres diziam que Portugal tem para com Melo Antunes uma enorme dívida, quando muitos militares e políticos reconheciam que Portugal seria diferente sem este homem e as agências internacionais noticiavam que tinha morrido o arquitecto da democracia portuguesa, ele ainda permanecesse um desconhecido para muita gente. Dizer que ele foi um dos protagonistas da Revolução de Abril é, porventura, redutor. "Melo Antunes foi verdadeiramente o pai desta democracia portuguesa", assumiu ontem Ramalho Eanes. Dentro do Movimento dos Capitães, ele era, sem sombra de dúvida, o que tinha mais formação política, o que sabia o que queria e como atingi-lo. "Eu tinha absolutamente a noção do que íamos fazer", disse Melo Antunes, numa entrevista ao PÚBLICO nos 20 anos do 25 de Abril.Entrou para o Movimento das Forças Armadas (MFA) no início de 1974, quando se convenceu de que não se tratava de um mero movimento corporativo. A ele caberia, então, em conjunto com Vítor Alves, a redacção da componente política do programa do MFA. Já tinham a ideia de que se tratava de derrubar um regime e implantar um outro de tipo ocidental, fazer a descolonização e desenvolver o país. O que Melo Antunes - e, como ele, muitos dos outros militares que planearam o golpe de 25 de Abril de 1974 - nunca pensou é que bastasse um abanão para o regime cair. Mas caiu. Estava ele nos Açores, onde casou pela primeira vez. Mais tarde voltou a casar, mas foi do primeiro casamento que lhe nasceram três filhos: Catarina, Ernesto e Joana. E por ironia da história, a primeira filha deu-lhe uma neta que é, simultaneamente, bisneta de Marcelo Caetano. Os Açores, onde, nos anos 60, conviveu com oposicionistas como Manuel Alegre, Medeiros Ferreira e Borges Coutinho, foram, aliás, um dos lugares-chave do percurso deste homem, nascido em 1933, numa família católica e conservadora, dominada por um pai militar. O outro lugar que marcou a sua vida foi Angola, para onde foi pela primeira vez ainda criança. E logo se apaixonou por aquela terra, onde voltaria anos mais tarde, em duas comissões de serviço.É quase como se nos Açores começasse a germinar a necessidade de revolução e em Angola tomasse consciência da premência da descolonização. E em ambas foi protagonista sem protagonismos. Os dias seguintes à revolução foram um bom exemplo disso mesmo. Quando se deu o 25 de Abril, não veio logo para Lisboa. Preferiu ficar nos Açores a ajudar as forças democráticas que se começavam a organizar. Só voltou a Lisboa quando recebeu uma ordem expressa para regressar.O facto de ser o elemento mais politizado do MFA tê-lo-á tornado mais vulnerável. Enquanto Otelo ou Vasco Lourenço pareciam ser intocáveis pelos partidos, Melo Antunes ia congregando ódios à direita e à esquerda. Chamaram-lhe de tudo, desde "comunista" a "reaccionário", consoante o lado de que vinha o ataque, a ele, que era o moderado por excelência, o homem que evitou o apropriamento da revolução por qualquer um dos extremos que a tentaram controlar. O pêndulo da balança revolucionária.Quando o seu programa político-económico foi ultrapassado pelo 11 de Março e a revolução pareceu cair nas mãos do PCP, foi Melo Antunes, que, fechado no seu gabinete do Palácio das Necessidades, escreveu sozinho o "Documento dos Nove", que fez um diagnóstico da situação e foi o elemento congregador e condutor da resistência à hegemonia comunista, acabando por precipitar o 25 de Novembro. Mas quando, no 25 de Novembro, a direita se colou ao Grupo dos Nove e os comunistas foram ameaçados por uma caça às bruxas, foi ele que foi à televisão dizer que o PCP era necessário à democracia. Também o seu papel na descolonização lhe valeu críticas. Ministro dos Negócios Estrangeiros em alguns governos provisórios, ministro sem pasta noutros, membro do Conselho da Revolução, ideólogo do MFA, couberam-lhe as peças mais difíceis deste processo: Angola e Moçambique. Nesse caminho, que trilhou contra o general Spínola, estavam também Almeida Santos e Mário Soares e nem sempre caminharam lado a lado.Em entrevista ao PÚBLICO, em 1994, assumiu que houve falhas, disse que o mal de que a descolonização enfermou foi "partir do princípio que havia boa-fé nos intervenientes" e deixou no ar uma curiosa afirmação: "Há aqui coisas que só Freud poderia explicar."Arrumada a descolonização e com a democracia a caminhar, a partir dos governos constitucionais Melo Antunes passou a ser apenas conselheiro da Revolução, atento ao terceiro "D" de Abril, o do desenvolvimento. Em 1982, com o fim do Conselho da Revolução, passou para o Conselho de Estado, órgão de que actualmente continuava a fazer parte.Nunca foi homem de partidos ou os partidos demoraram a perdoar-lhe o facto de não ter entregue o país a nenhum deles, em 1975. Afastado da política portuguesa, foi subdirector-geral da UNESCO, viveu em Paris, teve um escritório, foi consultor de empresas, viajou. Era, no entanto, notória, a sua proximidade ideológica em relação ao PS. Ou a um certo PS, a que aderiu em 1991, sendo sempre um simples militante, uma vez que o partido nunca o solicitou para mais. E foi no PS que fez o seu último gesto político, ao assinar a moção que Manuel Alegre levou ao congresso socialista deste ano. O mesmo Alegre que ontem dizia: "O país tem uma dívida para com ele. A única maneira de pagá-la é compreender este português raro, cidadão da utopia, que tinha um sonho e o cumpriu."