A lógica da batata
O uso do fogo para cozinhar vegetais como tubérculos foi decisivo para o desenvolvimento do homem, tanto física como socialmente, defendem cientistas norte-americanos. Não se trata propriamente da lógica da batata, mas a maior quantidade de calorias disponíveis fez não só com que os corpos e os cérebros dos hominídeos se desenvolvessem como criou um novo sistema de relações sociais.
Se o "Homo sapiens sapiens" inventou a batata frita, o "Homo erectus" terá sido responsável por um grande salto civilizacional quando, há cerca de 1,9 milhões de anos, começou a cozinhar tubérculos - plantas cuja parte comestível se encontra debaixo da terra, como cenouras e batatas. Uma equipa de investigadores norte-americanos publica no próximo número da revista "Current Anthropology", que sairá em Dezembro, um artigo em que defende que a maior abundância de nutrientes permitida pelo uso do fogo para cozinhar os tubérculos desencadeou uma série de acontecimentos decisivos para o desenvolvimento do género humano.A equipa de Richard Wragham, da Universidade de Harvard, liga o cozinhar dos tubérculos com alterações no tamanho do corpo e dos dentes dos hominídeos, características que diferenciaram o "Homo erectus" de hominídeos mais antigos, como os australopitecos. O facto de os tubérculos serem cozinhados resultou em importantes mudanças na estrutura social dos hominídeos, defendem os cientistas. "O processo da evolução humana tem muito a ver com a comida e a com a forma como é preparada", disse um dos elementos da equipa, Gregory Laden, da Universidade do Minnesota, citado num comunicado de imprensa da sua universidade. Os australopitecos, como Lucy - o esqueleto fossilizado de uma fêmea de "Astralophitecus afarensis", que viveu na Etiópia há 3,1 milhões de anos -, também comiam tubérculos, mas comiam-nos crus. Por isso, tinham grandes dentes, adequados para passar os dias inteiros a mastigar alimentos que, inevitavelmente, davam luta. Além de serem rijos, alguns tubérculos são mesmo venenosos, se não forem cozinhados. Mas, há 1,9 milhões de anos, quando apareceu o "Homo erectus" (cujo crânio aparece na foto), algo mudou. Os dentes tornaram-se mais pequenos, e a diferença de tamanho entre os sexos - que nos australopitecos era muito acentuada - diminuiu. O que mudou, segundo a equipa, é que estes hominídeos passaram a usar o fogo para cozinhar os tubérculos que recolhiam, tornando-os muito mais fáceis de mastigar. A introdução da carne na alimentação dos primeiros hominídeos - coisa que os cientistas estimam que tenha acontecido há cerca de 2,5 milhões de anos - não explica estas alterações, pois começou a ser consumida antes do tamanho dos dentes começar a reduzir-se. E o facto de passar a ser cozinhada não significa que mais nutrientes passassem a ser consumidos, pois a carne é tão nutritiva cozinhada como crua. A hipótese agora avançada contraria o que até agora é aceite como válido - que o fogo começou a ser utilizado há 500 mil anos, ou até mesmo só há 200 mil. Mas recentes escavações arqueológicas no Quénia dão força à hipótese de que o uso do fogo seja muito mais antigo - precisamente, há 1,9 milhões de anos, quando se pensa que terá vivido a espécie de hominídeos que deram origem aos homens modernos.Mas o trabalho desta equipa abre ainda novas pistas: o facto de ter sido encontrada uma nova fonte de comida, defendem, teve também implicações sociais. Quando a quantidade de calorias disponíveis aumentou, as fêmeas passaram a crescer mais - e a diminuição da diferença de dimensões entre os sexos é sinal de uma mudança nos sistemas de acasalamento. "Sistemas altamente poligâmicos - como os haréns dos gorilas ou a promiscuidade dos chimpanzés - estão tipicamente associados a grandes diferenças de tamanho entre os machos e as fêmeas", explica Gregory Laden. Quando a comida não é cozinhada, os alimentos são consumidos no momento e no local em que são encontrados - como devia acontecer com os australopitecos. Quando a comida é cozinhada, a lógica é transportá-la até um sítio comum, para ser cozinhada - e onde é mais facilmente roubada. "Entre hominídeos que cozinhavam, haveria motivos para estabelecer novas formas de cooperação", diz Laden. As fêmeas, mais pequenas, seriam mais vulneráveis. Por isso, teriam tendência a criar laços com machos que estivessem dispostos a colaborar na defesa das reservas de comida. E é aqui, segundo a equipa de Laden, que entra outra inovação evolutiva: a actractividade sexual feminina. Outras fêmeas de primatas são sexualmente atraentes apenas na altura da ovulação. Mas os homens sentem-se sempre atraídos pelas mulheres, o que poderá ser explicado como um processo evolutivo baseado na procura e conservação da comida. "Não sabemos quem é que cozinhava; mas a criação de laços e a formação de uma espécie de famílias em torno de uma fogueira parece uma estratégia estável e sensata, em termos evolutivos", diz Laden.