A agonia do regime de Ieltsin
Quatro governos em oito meses, é este o palmarés da Federação russa no ano de 1999. Ieltsin tende em acertar no primeiro-ministro que mais lhe poderá convir, mas entretanto já quer designar um sucessor à frente do Kremlin. Dias de agonia em pleno Verão.
Boris Ieltsin volta a mergulhar a Rússia numa perigosa crise política ao demitir todo o governo do país e substituir Serguei Stepachin no cargo de primeiro-ministro por Vladimir Putin, que chefiava o Serviço Federal de Segurança (FSB) e o Conselho de Segurança da Rússia. Além disso, como se esperava, marcou as eleições parlamentares para 19 de Dezembro e, para grande surpresa de todos, anunciou que pretende ver Vladimir Putin a sucedê-lo no cargo de Presidente da Rússia. Tanto a demissão de governos como a nomeação de novos delfins tornaram-se banalidades no país.Os russos consideram que "a segunda-feira é um dia difícil", necessário para curar a ressaca do fim-de-semana. Normalmente, Boris Ieltsin utiliza este dia para tomar importantes decisões políticas. Ontem não foi excepção. Chamou Serguei Stepachin ao Kremlin, agradeceu-lhe o bom trabalho realizado à frente do governo e, como reconheceu o ex-primeiro-ministro, "anunciou-me a minha demissão sem explicação". E realmente é difícil encontrar lógica nas decisões inesperadas do Presidente russo (ou da Família, como é conhecida no país a corte do "czar Boris"). Não obstante correrem rumores sobre o provável afastamento de Stepachin do cargo de primeiro-ministro, esta notícia caiu como um autêntico "balde de água fria" sobre os políticos russos, cuja maioria se encontrava de férias. Guennadi Ziuganov, dirigente comunista, declarou aos jornalistas: "Trata-se de um caso puramente clínico, mudar seis primeiros-ministros em dezoito meses!".Serguei Stepachin esteve três meses à frente do Governo e, nesse curto espaço de tempo, realizou alguma obra de destaque. O liberal Boris Nemtsov sublinha que "Stepachin chegou a acordo com os clubes de Paris e Londres sobre o adiamento do pagamento da dívida externa, normalizou as relações com o Ocidente depois da guerra na Jugoslávia, manteve o rublo estável, etc. Por isso, é difícil explicar a lógica da decisão do Presidente. Trata-se da agonia e degradação totais do Kremlin".Alguns analistas, e Vladimir Putin também, ligaram a demissão de Stepachin à situação escaldante no Cáucaso do Norte, onde as tropas russas continuam a tentar expulsar os guerrilheiros fundamentalistas islâmicos de quatro aldeias daguestanesas por eles ocupadas. Porém, se existem culpados, o principal é precisamente Vladimir Putin, porque, enquanto dirigente do FSB e do Conselho de Segurança da Rússia, deveria ter tomado medidas para prevenir o ataque dos guerrilheiros.A única explicação plausível para tão bruscas piruetas políticas reside no facto de a Família procurar desesperadamente formas políticas e pessoas capazes de garantir os seus interesses depois da saída de Boris Ieltsin do Kremlin, no ano 2000. Serguei Stepachin não dava essas garantias. Boris Nemtsov declarou a propósito: "Ieltsin não acredita que Stepachin seja digno de ser seu sucessor". Alexei Venediktov, director de informação da rádio "Eco de Moscovo", é mais concreto: "Stepachin não quis participar na guerra do Kremlin contra Iúri Lujkov e a coligação "A Pátria é toda a Rússia" e recorda as palavras de Tatiana Diatchenko, filha e conselheira de Ieltsin: "O papá não gosta de Stepachin, não gosta mesmo dele".A confirmação disso não se fez esperar. Boris Ieltsin apareceu nos ecrãs televisivos e, depois de anunciar que tinha marcado as eleições parlamentares para 19 de Dezembro, sublinhou que mais importante ainda são as eleições presidenciais. Por isso, decidiu também revelar o nome do político que lhe deve suceder no comando do Kremlin.Trata-se de Vladimir Putin, que, segundo Ieltsin, "é o político mais digno para ocupar o cargo de Presidente, capaz de consolidar e continuar as reformas".Após se ter mudado do gabinete de chefe do FSB para o edifício do governo russo, o novo delfim da Família disse aos jornalistas: "Vou candidatar-me obrigatoriamente ao cargo de Presidente da Rússia", sublinhando também que não tenciona impôr o estado de sítio, "porque não existem condições para isso", nem pretende fazer sérias alterações na constituição do governo.Porém, para ser sucessor do "Czar Boris", o antigo agente do KGB vai ter que superar sérios obstáculos. Primeiro, é necessário que a maioria dos deputados da Duma Estatal o confirme no cargo de primeiro-ministro. E esta tarefa parece ser a mais fácil, porque os parlamentares não querem dar argumentos a Ieltsin para dissolver o parlamento, impôr o estado de sítio e adiar as eleições. Guennadi Selezniov, presidente da Duma, declarou: "Voto nele nem que seja amanhã. O importante é que as eleições sejam realizadas em 19 de Dezembro". O segundo obstáculo - a impopularidade de Ieltsin e da sua corte - será mais difícil de superar. A rádio "Eco de Moscovo" fez uma sondagem entre os seus ouvintes. Dos mais de três mil consultados, apenas oito por cento disseram que votarão em Putin, tendo 92 por cento recusado o seu apoio ao favorito do Kremlin. Além disso, nas próximas presidenciais os russos não irão escolher entre a democracia e o comunismo, como aconteceu em 1996, mas entre um Kremlin corrupto e forças políticas de diferentes quadrantes políticos que propõem outras vias de desenvolvimento para a Rússia.Também não se pode esquecer que Boris Ieltsin, em nome da sua salvação política, já sacrificou vários dos seus delfins: Gaidar, Nemtsov, Tchernomirdin, etc.. Caso as coisas comecem a correr mal, Putin poderá ser mais um bode expiatório.O Presidente da Rússia (ou a Família) não sabe governar em estabilidade, apenas se sente como peixe na água na instabilidade e no confronto. Mas o Kremlin já não tem a força política e o apoio social que tinha. E as suas manobras bruscas a fim de salvar os seus privilégios e interesses económicos no futuro apenas fazem aumentar as fileiras da oposição às suas aventuras.