"Tentei introduzir o espírito do jazz no tecno"
Carl Craig é um dos poucos pioneiros do tecno de Detroit que continua a manter viva a herança revolucionária da cidade motor. Com a Innerzone Orchestra, o produtor americano compõe um universo complexo onde programação e improvisação, electrónica e jazz se tocam para formar um corpo sonoro híbrido.
Em parceria com Derrick May e depois a solo, Carl Craig cedo se distinguiu dos seus pares pioneiros do tecno de Detroit pela forma como conseguiu demarcar um território próprio. É o próprio quem o afirma nas entrelinhas. "A partir de determinada altura senti que tinha de ultrapassar o epíteto de 'homem de Detroit' e encontrar uma saída para a minha música" diz Carl Craig. "Foi aliás por isso que deixei de actuar com frequência como disc-jockey, porque comecei a sentir que existia um aproveitamento à volta do facto de pertencer a uma determinada geração... Era como se me pedissem para corresponder a uma imagem pré-definida e isso não me interessava."Ao longo da carreira, Carl Craig tem mostrado possuir ideias próprias para inscrever em sonoridades como o tecno ou o house. Através da sua editora Planet E e de pseudónimos como Psyche, Piece, 69, BCF, Paperclip People ou Innerzone Orchestra, o músico americano tem delineado um percurso onde é perceptível uma aproximação ao jazz. Em álbuns como "Landcruising", "The Sound Of Music" (como 69) ou "The Secret Tapes Of Dr. Eich" (como Paperclip People), essa ligação a espaços já era visível, mas foi através do álbum "More Songs About Food and Revolutionary Art" que foi dado um passo decisivo. Nunca, no entanto, os propósitos de combinar electrónica e jazz haviam sido enunciados como no álbum agora editado. "Com este disco tentei combinar aspectos da música 'live' com aquilo que normalmente faço, que é música programada", diz Carl Craig. "Quando conheci o baterista que trabalha comigo neste álbum, Francisco Mora, ele introduziu-me a diferentes géneros de música onde a improvisação desempenha um papel mais importante na composição do que na maior parte do tecno. Gente como John Coltrane, Max Roach, Miles Davis, Art Blakey ou Alice Coltrane eram muito bons nesse campo em particular. Já tinha utilizado aspectos da improvisação nos meus discos, mas com este álbum dei um grande passo em frente. O conceito era chegar a um produto final híbrido, que contivesse elementos electrónicos em ligação com música 'live'. Nos anos 70, Herbie Hancock já havia introduzido sintetizadores no jazz e eu quis descobrir novos espaços sonoros sem cair na facilidade do jazz revivalista. Tentei introduzir o espírito do jazz no tecno." O álbum "Programmed" inicia com o tema "Wrong Number". Nele uma voz afectuosa fala para uma máquina de atendimento de chamadas, numa aparente metáfora sobre a solidão das grandes cidades. "Muitas vezes a tecnologia afasta mais as pessoas do que as aproxima", refere Carl Craig. "A pessoa que fala em 'Wrong Number', telefonou por engano para o meu número e deixou-me aquela mensagem. Pensava que estava a falar com a namorada mas estava no local errado. Desde o primeiro momento que essa ideia andou a pairar na minha cabeça: as pessoas que andam enganadas no mundo porque estão no local errado e que por isso possuem uma visão distorcida da realidade. É um pouco aquilo que acontece com este disco. As pessoas que conhecem o meu trabalho vão pensar que 'Programmed' é um disco de tecno, mas na realidade não é."Na maior parte das faixas do álbum existe uma atmosfera mais sombria do que em anteriores discos e até os títulos de alguns temas - "The Beginning Of The End", "Eruption" ou "Monsters" - parecem querer reflectir o mal-estar das sociedades contemporâneas associado ao final de milénio. "Algumas faixas foram inspiradas nessa ideia de que muitas pessoas vão entrar em colapso porque chegamos ao fim de um tempo. Quer se queira quer não essas profecias acabam por criar um ambiente estranho e algo doentio." Mas "Programmed" não é composto apenas por ambientes negros, também existe espaço para temas acústicos vocalizados, inspirados no hip-hop e na "spoken word". "Foi um desafio incluir esses temas no disco. Tem a ver com esta fase da minha carreira: quero evoluir como produtor e se não tentar fazer coisas diferentes, dificilmente me darei por satisfeito. Neste álbum tive a oportunidade de trabalhar com excelentes músicos como Francisco Mora, o teclista Craig Taborn ou o violinista Michael Smith e penso que aproveitei esse facto ao máximo." Quem também colabora com Carl Craig na faixa "Architecture" é Richie Hawtin, mais conhecido por Plastikman. "Esse tema foi inspirado nos cenários do filme 'Blade Runner'. O Richie criou algumas sequências e sons e depois eu cortei aquilo que me interessava e reconstruí tudo outra vez. Todo o álbum foi aliás criado dessa forma: não existia uma estrutura definida para cada tema, ela foi sendo criada por mim aos poucos." Quando o tecno chegou à Europa, foi o lado digital e computorizado dessa música que foi mais valorizado, no entanto, a ligação da electrónica com a música negra nunca cessou de existir na mente dos estetas de Detroit. No princípio deste ano, Juan Atkins, através do pseudónimo Model 500, procurava afastar-se das sonoridades mais óbvias do tecno no álbum "Mind and Body", compondo canções inspiradas na música negra, e agora é Carl Craig que procura acercar-se de uma linguagem híbrida onde o jazz está presente. "É como se tivesse existido um movimento circular que nos tivesse conduzido outra vez às nossas raízes. Os afro-americanos desenvolveram uma série de géneros musicais como o jazz, os blues ou o... tecno. Para mim, o tecno dos anos 80 continua a ser uma visão urbana dos blues. São uma espécie de blues computorizados e, nesse sentido, tanto eu como Juan Atkins acabamos por incluir esse legado na nossa música."Há três anos, quando começou a actuar ao vivo com o baterista Francisco Mora (um músico que fez parte da banda de Sun Ra) e com o contrabaixista Eric Allen, Carl Craig foi acusado por alguns sectores mais conservadores da música de dança de estar a trair a "cultura DJ". O futuro no entanto veio dar-lhe razão, com muitos disc-jockeys e projectos do mesmo universo a renderem-se aos encantos dos espectáculos ao vivo. "Honestamente, parece-me que a 'cultura DJ' está a dar cabo de muita coisa. Neste momento, tornou-se tão fácil ser DJ: os discos são feitos de uma forma computorizada e depois é só colar uma série de discos sem que exista uma tentativa de oferecer algo diferente. O problema com esta cultura é que cresceu de tal forma que se torna complicado para o público em geral perceber aquilo que vale a pena. Por cada bom disco que é feito, existe um número infindável de cópias muito más." Para a feitura do novo álbum, Carl Craig criou mais um personagem com um nome bizarro e intrigante. Chama-se Blakula (também nome de uma das faixas), mas o jovem produtor não lhe parece atribuir grande importância. "Ter várias identidades ajuda-me a concentrar-me nos objectivos que pretendo atingir. É uma espécie de jogo, apenas isso. O que importa é que com a Innerzone Orchestra tentámos trazer um pouco de frescura à música electrónica e ao jazz, porque é interessante como os dois estilos estão próximos, não só em termos técnicos, mas também no próprio entendimento emocional da música. Hoje em dia, já não existem linguagens puras e é necessário analisar a música com algum sentido de humor, retirando toda a carga histórica que cada género transporta consigo. A Innerzona Orchestra é isso: é uma zona híbrida, sem nome, à procura de uma identidade qualquer."