O "terrível" escritor
Poeta, ensaísta, romancista e professor, uma da vozes mais sarcásticas e picarescas da literatura portuguesa, Alexandre Pinheiro Torres morreu. Portugal - com o qual tinha uma relação de ódio-amor - fica mais pobre. Há mais de 30 anos a viver em Cardiff, o "terrível Torres", como era conhecido, deixa uma obra incontestável, nomeadamente na área do movimento neo-realista.
O escritor, poeta e ensaísta Alexandre Pinheiro Torres faleceu na madrugada de ontem, em Cardiff, País de Gales, vítima de doença prolongada. Contava 75 anos e vivia há mais de 30 naquela cidade, onde era professor da universidade local em Literaturas de Língua Portuguesa.Nascido em Amarante, em 1923, formou-se em Físico-Químicas, na Universidade do Porto, e em Histórico-Filosóficas em Coimbra, cidade em que conheceu Joaquim Namorado e os poetas do Novo Cancioneiro. O percurso atribulado de Pinheiro Torres começou, depois de uma passagem na sua infância por São Tomé, a partir de um convívio estreito com Alexandre O'Neill, em Amarante, como recordou ao PÚBLICO a sua amiga de toda vida Maria Eulália Macedo. "Era uma criança alegre, fácil de conviver mas ao mesmo muito tímida, talvez pela carência de afecto que sempre teve." Porém, acrescenta Lala, como meigamente o amigo lhe chamava, "era fulminante nas respostas que dava". Um traço, de resto, que ao longo da sua carreira literária, e em particular enquanto crítico, não perderá de vista. Até ao fim. Alexandre Pinheiro Torres estreou-se na poesia, em 1950, com "Novo Génesis", fundando um ano depois, com Egito Gonçalves, a revista "Serpente". Começa a frequentar a tertúlia dos neo-realistas, na Pastelaria Smarta, em Lisboa, onde predominam Castro Soromenho e Carlos de Oliveira. Com Abelaira ou Herberto Hélder faz parte de outras tertúlias, nos cafés Bocage ou Montecarlo. E continua a escrever poesia. Mas é pela sua actividade enquanto crítico neo-realista - mordaz e virulento - que começa a dar nas vistas, sobretudo na década de 60. Temido e odiado por muitos, chegou mesmo a deixar de falar com O'Neill durante 15 anos. A professora e ensaísta Maria Alzira Seixo não tem dúvidas: "Pinheiro Torres marcou posição nas letras portuguesas contemporâneas como crítico, nomeadamente no seu livro 'Romance: O Mundo em Equação', de 1967. Nele assume frontalmente as teses neo-realistas vigentes e desenvolve-as com coerência, radicalismo e espírito de controvérsia, não só através das polémicas, que na altura manteve com figuras da época, como em leituras que desenvolveu de textos de autores como Carlos de Oliveira, Cardoso Pires e Alves Redol, documentos de extrema importância e exercícios de interpretação ideológica de muita penetração crítica."Documentos que verteu na imprensa, regularmente no "Diário de Lisboa", mas também na "Colóquio/Letras", "Seara Nova", "Vértice", no "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias" e, entre muitas outras publicações, no "Avante!". Mas o escritor, apesar de ter sido simpatizante do PCP, nunca militou nas fileiras comunistas. Preferia assumir-se como "compagnon de route". A polémica mais violenta, e ainda hoje recordada, foi a que manteve com Vergílio Ferreira, em torno do livro de estreia de Almeida Faria, "Rumor Branco". No entanto, quando o autor de "Aparição" faleceu, Pinheiro Torres, num depoimento ao PÚBLICO, não teve papas na língua: "Tenho consciência de que faleceu um dos maiores escritores que tivemos neste século. Ao apertarmos as mãos, apertámo-las verdadeiramente para além da morte."O PÚBLICO soube, aliás, que foi Pinheiro Torres - quando do 1º Encontro Internacional de Queirosianos, em Novembro de 1988, no Porto - que enterrou o machado de guerra com o autor de "Alegria Breve", obra que considerava ser "um dos dez maiores romances do último meio século".1965. Depois do rocambolesco encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores - por ocasião da entrega do Grande Prémio de Novela a Luandino Vieira - é detido no Aljube. Ordens da PIDE, apesar de a sua família ser uma "das mais poderosas dentro do salazarismo", como confessou à revista "Ler", em 1995.Decide partir. Para Cardiff. Desde então, a sua relação com Portugal é de ódio-amor. "Toda a ficção de Pinheiro Torres é construída a partir da ideia de que Portugal é um país menor", notou Eunice Cabral na recensão que fez de "Vai Alta a Noite" (em PÚBLICO de 8-11-97). Na escrita como nas declarações que, amiúde, roçam a provocação: "Sempre vivemos no Reino do Teatro. Toda a gente a representar. Tudo a fingir", disse na entrevista à "Ler". E acrescentava: "Todos os lusíadas-coitados se mascaram seja do que for. Até o Pessoa não resistiu."Quando falava do mundo literário português não estava com meias-tintas. E partia a loiça. "Somos pobres com alma de ricos", dizia, para incómodo de muita gente, no III Congresso de Escritores Portugueses, em 1991."É toda uma visão picaresca da mitologia portuguesa, patrioteira e conservadora, que Pinheiro Torres desmontou como poucos e com uma imaginação quase desvairada. Quando se está fora, tem-se a sensação de que não se existe, o que dá uma grande vontade de ficcionar todos os nossos ridículos", reconhece Lourenço. Mas como recorda o seu amigo Manuel Lopes, director da Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim, "por detrás da sua truculência, havia uma imensa ternura; a sua gargalhada mordaz escondia - sobretudo nas personagens que criava nos seus livros - uma outra relação com o país". Pinheiro Torres, de resto, logo que as aulas acabavam vinha a correr para Portugal, onde passava férias em Amarante, no Algarve e voltava à Póvoa de Varzim (o cenário de um dos seus mais belos livros de poesia - "A Ilha do Desterro"). Agustina Bessa-Luís, amiga de infância de Pinheiro Torres, justamente na Póvoa, não anda muito longe da opinião de Manuel Lopes. "Apesar do seu carácter bastante atrabiliário", diz entre uma gargalhada, "quando falava sobre a Póvoa, como em 'O Adeus às Virgens', era mais doce. Nos outros livros parecia que queria castigar a sociedade." "Talvez por isso, pelo seu génio sarcástico, a sua obra não foi ainda suficientemente apreciada", nota Eduardo Lourenço. Como acontece tantas e tantas vezes em Portugal, talvez agora se comece a ler uma das vozes menos classificáveis da literatura portuguesa. A do ensaísta que quer na poesia como na ficção não partilhou, curiosamente, das ideias neo-realistas. É assim com "A Nau de Quixibá", "Espingardas e Música Clássica", "Sou Toda Sua Meu Guapo Cavaleiro" (porventura o seu melhor romance) ou "O Meu Anjo Catarina", todos publicados na Caminho.Porém, o "terrível Torres" - como era apelidado na praça literária - deixa, também, uma obra única no plano ensaístico. E de lá do alto vai continuar a rir-se: "[Quando escrevo] Ninguém se pode divertir mais do que eu", disse ao "Diário de Notícias", "com excepção dos membros do júri dos prémios literários, adoradores da Nossa Senhora da Tristeza."