Cristianismo emancipa-se do judaísmo
O Concílio de Jerusalém, provavelmente no ano 52, marca o primeiro acto de independência da nova Igreja em relação à Lei judaica. Sob o impulso de Paulo, os "cristãos-gentios" são dispensados de certas exigências da Lei, como a circuncisão. O cristianismo universaliza-se. Divergem de vez os caminhos de cristãos e judeus. Vão ser precisos vinte séculos - e inúmeras perseguições - para que voltem a aproximar-se.
Jerusalém, a cidade santa, alarma-se com o proselitismo dos neocristãos da diáspora na Fenícia, em Chipre, na Síria. Para Pedro, Tiago e os outros discípulos que seguiram Jesus e mantêm a sua herança, a ideia de romper com o judaísmo é completamente estranha. Apesar de Jesus ter permitido que fosse feita a triagem na Lei de Moisés, eles continuam a ir diariamente ao Templo para as suas devoções, recitam os salmos de David e as Escrituras (ainda falta muito até que os Evangelhos sejam escritos), celebram anualmente a Páscoa judaica, praticam a circuncisão, rezam em hebreu e, mais frequentemente, na língua local aramaica (ámen, aleluia, hossana, marana-tha). Não deixam, no entanto, de praticar os gestos novos - a repartição do pão ou o baptismo da água -, que dizem ter aprendido do seu fundador, mas é tudo quanto os distingue dos outros judeus. Não procuram recrutar fora das sinagogas, onde repetem que o Messias chegou, que a tradição judaica "está cumprida" num certo Jesus. É sobre a forma de observar as prescrições judaicas que vai rebentar o conflito entre os "judaico-cristãos" de Jerusalém, fiéis ao Templo e à Tora, e os que, como Paulo, vêm dessa cultura judaica da diáspora, helenizada, mais crítica da Lei e aberta à sua evolução.A querela vai decidir-se a propósito dos pagãos gregos e romanos que querem converter-se ao cristianismo (os pagano-cristãos): é preciso submetê-los a todas as obrigações impostas pela Lei judaica, nomeadamente a circuncisão, ou devem ser dispensados? É tolerável admitir na nova Igreja circuncidados e não-circuncidados e fazê-los coabitar? Abre-se o primeiro grande debate sobre a coerência interna da nova fé, que a História registará com o nome de Concílio de Jerusalém. As suas consequências são incalculáveis.A assembleia realiza-se na Cidade Santa, provavelmente no ano 52 depois de Cristo. Ali estão reunidos a maioria dos apóstolos e dos "antigos". Para os que descendem do judaísmo farisaico, é uma heresia aceitar na nova comunidade adeptos não circuncidados. Eles evocam todo o rigor da Lei: "Se não vos fizerdes circuncidar segundo o costume de Moisés, não podereis ser salvos." Delegados de Antioquia, Paulo e o seu amigo Barnabé, convencidos de que o futuro da nova fé está fora da atmosfera asfixiante que reina em Jerusalém, pronunciam-se num sentido mais liberal. É a fé em Jesus, e já não a Lei de Moisés, que se torna o princípio de salvação. Impor a circuncisão aos pagãos gregos e romanos seria o mesmo que erguer um obstáculo à propagação da mensagem cristã. Paulo e Barnabé pregam em nome do "amor" e da "liberdade". E escandalizam o auditório: entre a obediência à Lei de Moisés e a nova fé em Jesus, não é esta última a mais importante? Se a origem judaica continua a ser um enraizamento espiritual, ela não pode continuar a implicar a dependência.Pede-se a Pedro e a Tiago para decidir entre os dois campos. Ambos gozam de uma grande autoridade por terem convivido com aquele a que todos chamam "o Senhor". Sobretudo Pedro, que encarna essa Igreja de Jerusalém que se mantém judaica. Mas ele recorda-se de ter convertido um pagão. E também Cornélio, um "temente a Deus", que dava muito dinheiro à sinagoga. Para Pedro, Deus não estabelece qualquer diferença entre os homens, sejam eles de origem judaica ou pagã. Ele dá o "Espírito novo" tanto aos pagãos como aos judeus. "Então", lança ele à assembleia de Jerusalém, "por quê provocar Deus impondo sobre a cabeça dos discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós próprios fomos capazes de suportar?"Tiago toma, por sua vez, a palavra. Sobe a parada e cita as palavras do profeta Amos, anunciando que o Messias virá para reconstruir "a cabana arruinada de David." "A minha opinião é que não se devem acumular os obstáculos diante daqueles pagãos que se viram para Deus", diz. "Exijamo-lhes apenas que se abstenham dos pecados da idolatria, da imoralidade, da carne não sangrada e do sangue." Advogados dos pagãos convertidos, Paulo e Barnabé ganharam a partida. São enviados a Antioquia, portadores de uma espécie de regulamento mínimo que ficará na História como o único "decreto" do Concílio de Jerusalém: "Os apóstolos saúdam os seus irmãos de origem pagã que vivem em Antioquia, na Síria e em Chipre. Decidimos não vos impor nenhuma outra obrigação para além das exigências inevitáveis: abster-vos das carnes dos sacrifícios pagãos oferecidos aos ídolos, do sangue, dos animais proibidos, tal como da fornicação. Do que fareis bem em evitar conscienciosamente. Adeus."É o primeiro gesto de independência da Igreja em relação à Lei judaica. Haverá muitos outros depois desta "cimeira" de Jerusalém. Vencidos quanto à circuncisão, os "judaico-cristãos" ortodoxos vão concentrar-se nas leis da pureza que interditam a um judeu partilhar a sua mesa com um não-judeu. É uma vez mais Paulo quem vai enfrentar este famoso "tabu" da comunidade da mesa. A ideia de que podem vir a nascer duas Igrejas distintas - os puros e os cristãos de segunda -, incapazes de celebrar juntas a última ceia do Senhor (a missa), é-lhe insuportável. Para não falar do afastamento entre judeus e cristãos.Paulo vai ao ponto de provocar Pedro, admoestando-o no famoso "incidente de Antioquia", que conta na sua Epístola aos Gálatas. Um dia, em visita à Síria, Pedro quer agradar a toda a gente e come à mesa de cristãos oriundos do paganismo. Eis que surgem alguns "duros", "gente do círculo de Tiago", escreve Paulo, que o acusam de escândalo. E prossegue: "Vimos Pedro retirar-se furtivamente e afastar-se, por medo dos circuncidados." Pedro agiu mal e Paulo ousa admoestar o primeiro discípulo de Jesus, criticando a sua cobardia. Não se conhece a reacção de Pedro, mas Paulo continua a sua advertência: "Como é que podes obrigar os pagãos a comportar-se como judeus? Nós somos judeus de nascimento e não pagãos. Mas sabemos que o homem não é justificado pelas provas da Lei mas apenas pela fé de Jesus Cristo."Dito de outro modo, o Antigo Testamento dos judeus - isto é, a velha aliança estabelecida entre Deus e o seu povo - apenas tem sentido quando Cristo cumpre as suas promessas e a graça libertadora suplanta a Lei judaica escravizante. Depois de uma tal provocação, cheio de temor, Paulo vai a Jerusalém, onde a multidão judaica reage mal. Expulsa-o do Templo, quer condená-lo à morte. Consegue escapar, mas estas ameaças vão reforçar ainda mais a sua vocação: é para as "nações" ou os "gentios" que deve agora voltar-se. Nas viagens que fará até ao fim da vida, até Atenas e Roma, nunca deixará de afirmar que recebeu por missão pregar primeiro aos pagãos, mesmo para escândalo dos judeus que se mantiveram judeus, que não reconhecem o Messias e continuam a viver no "velho mundo". Deve atribuir-se a Paulo a responsabilidade por uma separação judaico-cristã que imprimirá a sua marca na História durante dois mil anos? A resposta não é assim tão simples, porque o mesmo Paulo também nunca deixou de tentar limitar os estragos. Ele afirma que é o Deus de Israel que o envia a pregar Jesus: "Não digo nada a mais do que Moisés e os profetas disseram que deveria acontecer." Nunca leva a cabo uma missão sem antes ir à sinagoga. Se correm com ele, como em Éfeso, instala-se numa escola judaica próxima. Quando chega finalmente a Roma, não se esconde por trás da sua imagem de renegado, pelo contrário, reivindica a sua qualidade de judeu e responde a judeus e pagãos ao mesmo tempo: os judeus foram infiéis, mas os pagãos continuaram a ser idólatras. Vê nascer entre os novos cristãos de Roma uma tendência para se afastarem da nascente judaica e adverte-os: do mesmo modo que os judeus não quiseram abrir as suas portas aos pagãos, também os "pagano-cristãos" fazem mal em esquecer que a origem da sua fé é judaica. Paulo nunca se mostrará tão judeu como num ambiente pagão e tão pagão como num ambiente judeu.Seja como for, estão criados caminhos divergentes e vão ser precisos vinte séculos - e inúmeras perseguições - para que voltem a unir-se. Repousando largamente nesta querela de herança, não mais cessará de aumentar a distância entre judaísmo e cristianismo. O cristianismo rejeitou certas práticas do judaísmo mas guardou a fé num deus único, na história da salvação, nas Escrituras, na ética, na espera da plenitude. Ao privar-se do seu laço com o judaísmo - esse perigo absoluto que Paulo tinha percebido e denunciado -, a comunidade cristã nascente esqueceu que a história da salvação passa pela história do povo eleito. A vulgata cristã das origens espalhou uma imagem truncada, degradante, odiosa do povo de Israel. É então que nasce o "ensino do desprezo", que o historiador Jules Isaac irá denunciar em Roma, diante do papa João XXIII, em 1961. Este "ensino" encontra os seus fundamentos nos Padres da Igreja, num Gregório de Nissa (331-394), que denunciava "os assassinos do Senhor", um Jerónimo (347-419), que estigmatizava "as serpentes cuja imagem é Judas e a oração um zurrar de burro", um João Crisóstomo (350-407), que chamava "bordéis" às sinagogas e não tinha palavras suficientemente cruas para vilipendiar "esses bandidos pérfidos, destruidores, debochados, iguais a porcos, mais ferozes que as bestas selvagens, que imolam as suas crianças ao diabo". Estes venerandos Padres da Igreja gostavam da metáfora animal e tinham o verbo fácil.Estamos no século IV. Desde o Édito de Milão, assinado por Constantino (313), a liberdade religiosa é tolerada. O cristianismo torna-se a religião do império. O judaísmo sobreviveu à destruição do Templo, em 70, e estendeu-se para longe de Jerusalém, continuando a atrair pagãos e cristãos. A controvérsia não pára de crescer. Estamos num contexto de pura polémica, que é também alimentada pelo Talmude. Os bispos e os teólogos defendem-se da concorrência recorrendo aos piores meios. O seu antijudaísmo vai transmitir-se de geração em geração, com as fases agudas das Cruzadas e da Inquisição. Os direitos dos judeus são abolidos pouco a pouco. São expulsos da França de Filipe, o Belo, em 1306, da Espanha dos Reis Católicos, em 1492. O século XI inventa o gueto e medidas discriminatórias contra os judeus são decretadas em França e na Alemanha. Os judeus são acusados de roubo de hóstias, de assassínios rituais, de envenenamento dos poços. "Eles mataram Jesus", por isso podem também degolar crianças ou espalhar a peste negra. Em Béziers, até 1160, o apredrejamento das casas dos judeus é permitido desde Sábado de Ramos até Sábado de Páscoa. Em Toulouse, em cada véspera de Páscoa, um judeu é esbofeteado publicamente pelo senhor da cidade. Há apenas cinco séculos, quando da eleição de um papa em Roma, o chefe da comunidade judaica era obrigado a entregar-lhe o seu mais belo livro da Tora, a prosternar-se diante dele e receber um pontapé bem dirigido, antes de retirar-se por entre alas de gente que o insultava. Até 1959, uma oração pelos "judeus pérfidos", suprimida pelo papa João XXIII, faz parte da liturgia católica da Sexta-Feira Santa.Foi o antijudaísmo das origens cristãs que abriu o caminho ao anti-semitismo moderno, pagão e racial dos nazis, que conduziu à tragédia de Auschwitz? O Vaticano publicou, a 15 de Março de 1998, um documento que contesta esta tese sem negar a responsabilidade de muitos cristãos nas aberrações do passado. Desde então, as Igrejas aceitaram reler os fundamentos da sua fé à luz desse acontecimento da Shoah que Elie Wiesel ou Emmanuel Levinas chamam "ausência" ou "eclipse" de Deus. Ao ensino do desprezo, substituíram o "ensino da estima" pelos judeus. Quando, no Concílio Vaticano II (1962-65), a Igreja Católica condenou os estereótipos, limpou o povo judeu da velha acusação de "deicida" e afirmou que o povo eleito não foi privado da aliança com Deus. A 13 de Abril de 1986, em Roma, um papa vai pela primeira vez a uma sinagoga. Nesse dia, tal como Paulo na sua Epístola aos Romanos, João Paulo II afirma convictamente que os judeus "são os irmãos preferidos e, num certo sentido, os irmãos mais velhos" dos cristãos. Depois de quase dois mil anos, fecha-se o círculo. A reconciliação não está concluída, mas está aberta a via para um "arrependimento" perante o povo judeu, certamente tardio, mas que ganha todo o seu significado na véspera do ano 2000 e da entrada no terceiro milénio do cristianismo. * exclusivo PÚBLICO/"Le Monde"Amanhã: Agostinho, o "doutor da graça"