Tabucchi versus Graça Moura
"A Educação do Estóico" é o único manuscrito que Fernando Pessoa atribuiu ao Barão de Teive, um outro heterónimo seu. O Leituras pediu a um pessoano convicto, António Tabucchi e a um não-pessoano, Vasco Graça Moura, que lessem a edição preparada pelo investigador Richard Zenith.
O Barão de Teive, silhueta de perfil apenas esboçada, sai de um dos estereótipos literários mais frequentados: o manuscrito encontrado por acaso. Não em Saragoça como o do Potocki, nem em circunstâncias bizarras como o do Gordon Pym do E. A. Poe, nem nos "boudoirs" ou conventos do século XVIII, obviamente franceses e algo perversos, de amantes diabólicos ou de freiras apaixonadas. Este repousava simplesmente na gaveta dum quarto de hotel, onde fora guardado para ser preservado "das mãos suspeitamente limpas dos criados".Esta figura fugidia que, para nós, espectadores agradecidos, Richard Zenith "restaurou" com dedicada atenção, atravessa rapidamente a "tragédia subjectiva" desse teatro sem palco que é a obra de Pessoa.Personagem, tal é o seu estatuto, e assim temos de o ler. Eventualmente ideia platónica de personagem que, para existir, não precisa de nenhuma biografia. Quanto ao quociente autobiográfico com que Pessoa o possa ter dotado, infelizmente já não é tempo para acreditarmos nisso. Como Tolstoi e Balzac, Pessoa pensou ser tanta coisa: mas, à diferença dos grandes romancistas do século XIX, ele sabe que há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos; e se estes novelistas geniais conquistaram o mundo antes do século XX os levantar da cama, ele, duma maneira incontornável e dolorosa, levantou-se no seu século e viu que o mundo era alheio, saiu de casa e viu que ele era a terra inteira, mais o sistema solar, e a Via Láctea, e o Indefinido. E é esta consciência e auto-consciência da nossa condição humana que o torna o maior romancista sem romance e o escritor mais inexoravelmente moderno: ponto de chegada do qual é necessário, duma maneira ou doutra, voltarmos a partir.Se ele próprio tornou impossível o nós acreditarmos que algo da verdadeira vida dele esteja dentro das vidas alheias que escreveu, até é plausível suspeitarmos que seja verdadeira a vida que realmente viveu, aquela "provisória representação visível de si-próprio" como dizem as palavras da dedicatória duma fotografia enviada à Tia Anica. Tudo falso portanto? E falso também este Barão de Teive tão convencional, não estóico verdadeiro, mas "cliché" do estóico, "cliché" do amargurado, "cliché" do suicida? Antes pelo contrário: nada de mais verdadeiro. Feito daquela verdade de que fala Púchkin quando afirma: "Chorei tantas lágrimas sobre a ficção". Estóico, a bem ver, não é o Barão de Teive, mas o poeta que o imaginou; e eventualmente estóicos somos nós, habitantes deste milénio moribundo, a quem alguém ensinou que afinal não éramos nós a sonhar uma borboleta, mas talvez fôssemos apenas o sonho dessa borboleta; nós que já não podemos ser o lagarto a quem cortaram o rabo e que espera, pelas leis da natureza, que o rabo lhe volte a crescer; mas apenas o rabo que é rabo para aquém do lagarto e, remexidamente, contra qualquer lei, espera que lhe volte a crescer o lagarto.Naquela noite achou que o Martinho da Arcada estava insuportável e que o mundo estava a ficar de pernas para o ar. Até o copinho de aguardente branca, que esperava sorver e saborear vagarosamente com o café, lhe sabia a uma ginjinha de travo açucarado e manhoso. Já nada tinha o paladar do costume. Olhou para o criado, um sujeito de ar bilioso e farda descuidada com botões de latão desapertados, de bigodinho aparado como o dele, mas sem óculos, que tinha pousado a bandeja e chupava às escondidas uma ponta de cigarro, semi-oculto por uma das colunas. Olhou depois para todos os lados. Não estava ali mais ninguém. O único ruído perceptível era o de um carro eléctrico a arrastar-se já para os lados do Arco da Rua Augusta. Sentia-se maçado e desocupado. Decerto podia imaginar o Tejo em paralelo com o rio da sua aldeia, mas isso já era um lugar comum desde a tarde do Caeiro de que havia de falar ao Casais quando o conhecesse. E tinha a certeza de que viria a conhecê-lo porque aqueles rapazes da Presença mais tarde ou mais cedo haviam de contactar com ele. De repente vieram-lhe uns versos à memória: "... és murmúrio de luz na pálida lucerna / E ocultas no vulcão a forja em que rebramas". Rebramas. Que horror! Queria dizer respeito ao sol. Havia mais coisas, como "Ablui, fecunda a Grei na cachoeira ardente". Ablui. Livra! Lembrava-se de ter lido aquilo há uns quinze anos na Renascença Portuguesa. Antes interpelar Deus como os rapazes de Coimbra, como remorso ou expiação, ou como simples invectiva para Lhe dizerem não ser verdade que Ele existisse. Talvez valesse a pena escrever sobre o autor algumas páginas íntimas e de hetero-interpretação. Mas quem era o autor? Um sujeito empertigado, filósofo racionalista, de óculos sem aro e de bigode. Decididamente o bigode era uma fatalidade. O homem era poucos anos mais velho do que ele, uns cinco talvez, mas escrevia mal, com laivos de um dogmatismo da razão que lhe tinham passado para a gramática. Achava isso insuportável. Via-se que estava empanturrado de Platão e de Espinosa, de Kant e de Berkeley. Ainda entediado tirou da algibeira uma breve folha de papel. Estava inteira e boa, dobrada em quatro. Hesitou, mas acabou por desdobrá-la, espalmando-a sobre o tampo de mármore brunido da mesa de café. Suspirou a pensar no Sá-Carneiro. Pegou na caneta e pôs-se a limpar os óculos devagar, enquanto fitava o tecto com olhar vago, como se olhasse os céus perdidos. Sentiu uma corrente de ar e bebeu mais um pequeno gole do cálice enquanto fazia mentalmente uma careta. Aquilo estava verdadeiramente intragável. E foi aí que, de súbito, a ideia lhe surgiu, com o seu quê de definitivo e triunfal. Ah, os triunfos. Lembrou-se outra vez do Arco da Rua Augusta e de um fragmento da sua inscrição pomposa: "Virtutibus Maiorum". O que o homem estava mesmo a precisar era de que ele lhe fabricasse um heterónimo que não quisesse de todo conhecer os prazeres da vida. O heterónimo podia comportar traços de carácter e personalidade descoincidentes com o modelo e todavia ter a ver com ele numa raiz íntima em que se entrelaçavam as semelhanças e as diferenças de modo a que tudo fosse dar ao mesmo, sem se poder falar de convergência nominal. Acendeu um cigarro. A figura teria a mesma origem social e preconceitos de classe idênticos. Havia de se expressar num português seco, rígido e desencantado, a raiar o desagradável. Traria à sua escrita uma espécie de subjectivismo despido de emoções especiais, ou calculado para a ausência delas depois de evocadas, e objectivado por um racionalismo estreme. A ponto de chegar a afirmar que o abstracto foi sempre para ele mais impressionante do que o concreto. Trairia a sua genealogia espiritual por uma relação desabusada com a teoria da saudade. Por exemplo, qualquer coisa como "nunca tive saudades, porque nunca tive de que as ter e fui sempre racional em meus sentimentos". E seria menos..., digamos, berkeleyano, afirmando que a dignidade da inteligência está em reconhecer que é limitada e que o universo está fora dela. Realmente, porque é que uma cadeira havia de ser um simples sistema de equações? E também havia de dizer que a conduta racional da vida é impossível e que a inteligência não dá regra. Com efeito, como é que a personagem conseguiria distinguir pelo simples uso da razão o sabor de uma cereja do de uma ameixa?Nesse momento, o heterónimo seria o ortónimo posto às avessas. Aqui, deteve-se: tratando-se de heterónimos, ortónimo era ele mesmo, autor da facécia e não um terceiro. O heterónimo é que passava a ser esse terceiro. Pensou que a necessidade da expressão caía em jogos malabares que a razão desconhece. So far so good. Se estava a imaginar o heterónimo de alguém, o melhor era chamar ortónimo a esse alguém. O "outro" ortónimo. Mais tarde, sempre daria para umas especulações dos dialectas encartados sobre a tristeza de ser. Faria umas aproximações, discretas, claro está, não fosse a posteridade descobrir uma chave para elas, com as veleidades anterianas do seu modelo assim retratado em negativo, mas, supremo gozo, dando ao pessimismo do poeta de Ponta Delgada uma base sexual irrealizada. O heterónimo seria assim um Doppelgänger mais real e menos conceptualmente disciplinado do que o acompanhado por essa sombra descarnada e verbal. Pousou a caneta e rebuscou as algibeiras do colete. Viu as horas. Ainda não era muito tarde. Foi quando se perguntou qual a lógica última dessa personalidade. Entreviu que tinha de condená-la ao suicídio. Pallida mors aequo pulsat pede... Isto soava como uma homenagem ao horacianismo de Ricardo Reis. Era melhor mors omnia solvit. Na verdade a sua arca era uma urna funerária. Rabiscou mais uma nota. Essa passagem ficaria para desenvolver mais tarde. Em todo o processo seria natural que houvesse uma certa injustiça. Notar-se-ia menos pelo lado fragmentário das páginas a escrever. Mas decerto algum sujeito de língua inglesa, muitos anos depois, quando a sua fama chegasse ao Zénite, remexendo-lhe os papéis e organizando-os nalguma sequência inteligível, havia de chamar-lhe consciência estóica. Sim, era isso mesmo.Acenou ao criado apontando as duas moedas que pousara sobre a mesa. Vestiu a gabardine e saiu. Na rua dos Douradores, cruzou-se com o guarda-nocturno que levou a mão à pala do boné e pareceu-lhe que a janela do seu vago conhecido, aquele insuportável Bernardo Soares, ainda estava acesa. Tinha parado de chover. Resolveu seguir a pé para casa. Tinha de ser ele a escrever aquelas páginas, uma vez que o seu outro e futuro heterónimo Antonio Tabucchi ainda não tinha nascido e se tivesse nascido havia de recusar-se a pegar-lhes a sério. Gostava de poder poupar-lhe algum trabalho de exegese, o que é sempre uma atitude decente do autor para com o próximo. Além disso, se Camões também era italiano, porque é que Antonio Tabucchi não havia de sê-lo? E foi assim que, numa noite de 1929, Fernando António Nogueira Pessoa começou a engendrar o Barão de Teive como heterónimo de António Sérgio, aliás, Visconde de Sérgio de Sousa.