JAE: muitos "negócios" de amigos
A comissão de inquérito à existência de corrupção na JAE começa hoje a discutir o relatório da investigação que fez durante meio ano. Antecipando o que os deputados vão concluir, o PÚBLICO apresenta o seu próprio retrato do que foi posto a nu sobre a Junta neste inquérito. À cabeça, é visível que era gerida num espírito de facilitismo, com o objectivo de que a obra fosse feita a qualquer preço. Mas não foi só a má gestão da JAE e o amiguismo que imperava na sua relação com empresas que saltou aos olhos neste inquérito. A falta de meios de funcionamento das comissões de inquérito parlamentar e o seu mau relacionamento com a Procuradoria-Geral da República e com a figura do segredo de justiça também estiveram patentes nestes seis meses de trabalhos. E afigura-se como prioritária a necessidade de rever as normas dos inquéritos parlamentares.
A comissão de inquérito parlamentar às denúncias de corrupção na Junta Autónoma de Estradas (JAE) recebe hoje a proposta de relatório e conclusões elaborada pelo deputado do PP António Pedras. Depois de seis meses de investigações e de dezenas de audições, chega ao fim a tarefa de saber se houve ou não corrupção na Junta, em que se empenharam os 21 deputados do PS, do PSD, do PP e do PCP, presididos pelo socialista José Junqueiro.De concreto, nada ficou provado sobre a existência de corrupção, melhor dizendo: sobre financiamentos ou favorecimentos a partidos políticos. Mas saltou aos olhos, durante os trabalhos da comissão, que o funcionamento da JAE não era um espelho de virtudes e uma referência de como se deve comportar a gestão dos interesses do Estado. O espírito de facilitismo e de amiguismo, do fazer obra a todo o custo, de deixa andar desde que role é notório quando se vê a forma como a JAE trabalhava.A comissão conseguiu mesmo, além de ter confirmado e aprofundado casos já referidos na sindicância à Junta feita por ordem do ministro do Equipamento, João Cravinho, trazer à luz da investigação casos que não tinham sido referidos nas averiguações lideradas pelo magistrado do Ministério Público Pinto dos Santos: anúncios falsos de obras e expropriação da pedreira de Mouçós.Foi o próprio presidente da comissão de inquérito, José Junqueiro, quem declarou ao PÚBLICO que "há uma inadaptação e viciação na gestão do organismo" e uma "completa falta de transparência de que transparece a possibilidade de utilização da Junta com fins políticos". Uma conclusão prévia a qualquer documento da comissão e que Junqueiro assumiu a título pessoal, mas que apresenta como consensual e que é baseada naquilo que a comissão foi ouvindo e lendo durante seis meses.A começar pela acusação de que este organismo do Estado foi usado para favorecer eleitoralmente o partido então no poder, o PSD, uma vez que, em 1995, foram lançados concursos para obras sem que o anúncio legalmente obrigatório saísse em "Diário da República" e sem que o respectivo processo estivesse aberto.As acusações de irregularidades são, porém, inúmeras e passam pelo laxismo do uso e abuso do regime de obras a mais para concretizar projectos, fazendo disparar os preços finais e permitindo que os trabalhos arrancassem sem que estivessem determinadas as suas envolventes. Mas também o recurso ao regime de apostilhas, isto é, de pagamentos extras para acelerar o ritmo de execução e, logo, antecipar o seu termo - um sistema que, nas palavras dos responsáveis da JAE e da tutela política, é visto como de "reposição" de prazos e não de "antecipação". O uso de apostilhas deu-se, sobretudo, nos anos eleitorais de 1991 e 1995, embora a administração da JAE no actual Governo tenha mantido o recurso a este sistema. Ainda esta semana a comissão de inquérito ouviu a história dos 385 mil contos gastos pelo ministro João Cravinho para antecipar a inauguração do túnel da Gardunha, procurando fazê-la coincidir com as legislativas, quando a obra só deveria ficar pronta em Fevereiro de 2000.Outra situação que, apesar de consentida pelas regras internas, indicia uma gestão incorrecta era a possibilidade de responsáveis e técnicos da Junta prestarem serviços em regime de acumulação ou deterem empresas que funcionavam na esfera das obras públicas lançadas pela JAE, o que poderia ser sintoma de promiscuidade entre interesse público e privado. Neste capítulo, o caso mais flagrante é o do grupo de responsáveis da Junta, envolvendo o seu ex-vice-presidente Donas Botto, que ficou conhecido pelos "sete magníficos".Isto sem esquecer as suspeitas de favorecimento que pairam na adjudicação, à Tecnovia, da construção do lanço da CRIL entre Olival de Basto e Sacavém. Ou nas acusações de que funcionários da Junta pediram a empresários verbas para o partido no poder, o PSD, para ganharem adjudicações (Carlos Oliveira) ou verem os seus terrenos expropriados (Fernando Matos Palma). Ou mesmo de tráfico de influências e informações (caso da pedreira de Mouçós).Em suma, informação "quente" obtida por uma comissão de inquérito e que, uma vez enviada para a Procuradoria-Geral da República, poderá constituir assunto para procedimento criminal, contrariando a tendência geral nesta legislatura, em que a febre das comissões de inquérito inúteis assolou a Assembleia da República. Esta investigação surgiu por proposta do PP com o objectivo de apurar responsabilidades políticas, na sequência da entrevista do ex-presidente da Junta general Garcia dos Santos ao semanário "Expresso", publicada a 4 de Outubro de 1998. Aí, este militar de Abril denunciava que a JAE servia de veículo para o favorecimento de partidos.No seu depoimento na comissão, Garcia dos Santos acabou, no entanto, por esvaziar o balão que ele próprio enchera ao declarar que sabia os nomes de empresários a quem tinha sido pedido dinheiro, mas não os revelava porque não tinha autorização dos próprios - disse apenas o de Fernando Matos Palma, com a autorização deste. Explicou ainda que a acusação de favorecimentos na Junta se baseava numa conversa de café com um amigo, sem "ligação partidária", de nome Fernando Lopes Barreira, que o alertara para a necessidade de colocar gente do PS na Junta e tirar de lá o do PSD. Mas Lopes Barreira negou, na comissão, que fosse esse o conteúdo da conversa com o general.Garcia dos Santos chegou ao fim em guerra com o ministro João Cravinho, que acusou de o ter traído, de lhe ter mentido, agido de má-fé e demonstrado falta de carácter durante o seu processo de demissão da JAE. "O senhor ministro é um indivíduo sem carácter, mentiroso e agiu comigo de má-fé", garantiu o general, numa carta dirigida à comissão de inquérito em que desdiz o depoimento do ministro na comissão. Acusações que levaram Cravinho a responder com a ameaça de um processo.Resta saber se o eventual processo de Cravinho a Garcia dos Santos será a única acção judicial a sair directa ou indirectamente deste inquérito ou se, quando os deputados votarem, no próximo dia 26, o relatório de António Pedras, aprovarão acusações de ilícitos na gestão da JAE e em casos relacionados com este organismo do Estado.