A eternização da "limpeza étnica"
No dia 20 de Julho de 1974, milhares de soldados turcos invadem o Norte de Chipre em resposta a uma tentativa de golpe de nacionalistas gregos que pretendiam concretizar a "Enosis", a união com a Grécia. A acção militar de Ancara, ordenada pelo primeiro-ministro, de então e actual, Bullent Ecevit, vai implicar a divisão da ilha, o deslocamento forçado de dezenas de milhares de civis e a eternização da presença militar de Ancara em mais de um terço do território. A grande consequência interna na Grécia é o fim do regime ditatorial dos coronéis. Mas a "limpeza étnica" foi legitimada.
No passado dia 15, pelas 5h30 da manhã, as sirenes ecoaram em todo o território da República de Chipre (Sul do território) para comemorar o fracassado golpe de Estado inspirado pelo regime dos coronéis de Atenas e que serviu de prelúdio, e justificação, para a invasão turca do Norte da ilha. Desde domingo passado que se sucedem cerimónias religiosas, visitas aos cemitérios e celebrações públicas em todo o Sul da ilha dividida, onde agora habita a população grega, para condenar o golpe conduzido contra o ex-Presidente cipriota, o arcebispo ortodoxo Makarios III, por militares gregos estacionados em Chipre e pela organização nacionalista de extrema-direita EOKA-B.Inspirado pela "junta dos coronéis" que detinha o poder em Atenas desde o golpe militar de Abril de 1967, o coronel Ioannidis, dirigente da EOKA-B, fomentou um golpe de Estado destinado a concretizar a Enosis (a união de Chipre à Grécia), a última "fuga para a frente" de um regime militar cada vez mais contestado. Também fazia parte dos planos dos golpistas assassinarem Makarios, que era apoiado pelo poderoso Partido Comunista local, mas o arcebispo conseguiu escapar do país. Em nome da protecção, muitas vezes justificada, da minoria turca muçulmana que habitava Chipre (18 por cento da população) e receando que o golpe concretizasse a união - excluída do acordo constitucional de 1960, que formalizou a independência da antiga colónia britânica -, o Governo de Ancara, então dirigido, tal como hoje, por Bullent Ecevit, ordenou no dia 20 de Julho a invasão na parte norte da ilha. Foi há 25 anos.Os exércitos grego e turco entram em alerta, e durante algum tempo existe a possibilidade real de um confronto entre os dois países vizinhos e membros da NATO. Mas a mobilização grega fracassa e os militares gregos colocados em Chipre recusam-se a obedecer às ordens de Ioannidis para atacar a Turquia. Tal como, já na década de 80, o fracasso militar nas Malvinas (Falkland) implicará o derrube da ditadura militar na Argentina, o fracasso deste golpe sentencia o fim do regime dos coronéis na Grécia.O frágil Governo de Ioannidis desintegra-se e arrasta consigo o desmembramento da ditadura grega. No dia 24 de Julho de 1974, proveniente do seu exílio em França, chega a Atenas Constantino Karamanlis e, após um curto período de transição, a democracia é restaurada no país. As consequências desta "aventura" da extrema-direita grega têm, contudo, um elevado preço em Chipre. Após a primeira acção ofensiva, as forças turcas investem de novo em Agosto numa região situada muito perto das suas costas, e acabam por ocupar 38 por cento do território. 25 anos depois, 35 mil soldados turcos permanecem no Norte da ilha. E, em 1983, o dirigente cipriota turco Rauf Denktash proclama unilateralmente a "República Turca de Chipre do Norte", apenas reconhecida por Ancara. Um quarto de século mais tarde, uma linha de 150 quilómetros, a "linha verde", divide a ilha e a sua capital, Nicósia, separada no centro por duas barreiras de arame farpado, com sentinelas e sacos de areia. É a zona-tampão colocada sob vigilância da ONU, uma das mais antigas missões dos capacetes azuis, presentes em Chipre desde 1964, com um custo anual de 18 milhões de dólares (perto de 3,5 milhões de contos). A concretização da divisão de Chipre fomentou uma enorme "limpeza étnica", o deslocamento forçado de civis que já tinha atingido populações gregas e turcas, noutros territórios, no início da década de 20. Ascendem a 180 mil os refugiados gregos, numa população de 750 mil habitantes, que são forçados a dirigir-se para o Sul da ilha, enquanto 50 mil turcos rumam ao Norte. Os primeiros estão proibidos de regressar à zona controlada por Ancara e pelos líderes turcos locais. Ainda hoje as famílias de 1619 cipriotas gregos "desaparecidos" e as de 500 outros cipriotas turcos exigem explicações. Desde então, muitas dezenas de milhares de "colonos" provenientes da Turquia se têm instalado no Norte da ilha, ao mesmo tempo que cerca de 50 a 60 mil cipriotas de origem turca foram abandonando o território desde 1974, para se instalarem na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos ou na Austrália. A "descaracterização" da ilha prossegue e a generalidade dos cipriotas, gregos ou turcos, continua a sentir-se vítima de uma agressão rodeada de um silêncio intencional, simples peões de uma estratégia que comprometeu o regresso à possível coabitação. O secretário da Defesa dos EUA, William Cohen, efectuou recentemente uma visita a Atenas e Ancara e defendeu o início de negociações directas entre as duas partes "o mais cedo possível". Mas os dois campos permanecem extremados, o lado turco exige "tratamento igualitário" para a sua autoproclamada república e as negociações sobre a adesão da República de Chipre à União Europeia contribuíram para azedar o diálogo. Numa recente sessão no Parlamento de Ancara, destinada a celebrar os 25 anos da "Operação de Paz em Chipre", a resolução aprovada refere que "a recente operação similar da NATO no Kosovo contra os sérvios comprova a justeza da operação em Chipre". Este argumento parece comprometer qualquer tentativa de solucionar o perigoso impasse que subsiste na ilha dividida, e que ameaça eternizar-se.